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Por onde anda a sua voz?

Sobre a voz e sua ausência

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Na minha vizinhança, há um bebê recém nascido. Não sei exatamente em que apartamento ele ou ela mora, mas sei que ele ou ela existe. Sei pelo seu choro. É um choro alto, forte, cheio de vida. O choro é o nosso idioma mais original. É a nossa primeira voz. Abordei recentemente esse tema na coluna de 05/09/2019 “Lágrima: sentimento em forma líquida”. AQUI.

Macaque in the trees
Sobre a voz (Foto: Cristian Newman (Unsplash))

O bebê, meu vizinho, comunica com muita potência suas necessidades, sua fome, seu desconforto. Um bebê é sempre espontâneo, não se cala: sua voz afirma um pedido firme de cuidado e diz: eu existo! Cuide de mim!

Dependendo do ambiente em que somos criados, nossa voz se desenvolve potente, ou atrofia. Uma voz que se desenvolve é aquela que encontra um ambiente adequado de cuidado e reafirmação; um ambiente que acolhe, mas que também oferece os limites necessários à convivência com o outro. É uma voz em total sintonia com o “eu existo", "eu tenho minhas necessidades", "eu ocupo um lugar nesse mundo" e "tenho direito a ocupar um lugar”. Essa construção é cimentada pela qualidade dos vínculos afetivos. Quanto mais estáveis e afetuosos esses vínculos familiares, mais segura de se colocar no mundo será a voz. Aos poucos, o grito do bebê vai sendo substituído pela fala mais articulada e segura. Quando adultos, a segurança de nossa fala será um dos instrumentos mais importantes para afirmarmos nosso direito de sermos quem somos e lutar por isso.

A nossa voz atrofia sob uma grande variedade de circunstâncias. Uma delas é quando não sentimos, por parte de nossos primeiros cuidadores, a atenção, o afeto, o cuidado, o toque carinhoso e o olhar confirmatório que nos diz sem palavras: "Você existe, você é importante para mim, eu cuidarei de você, fique tranquilo, o mundo é seguro, eu estou aqui”. Essa sensação de segurança básica é a fonte mais importante para o tônus da nossa futura voz.

Se, quando crianças, não sentimos, em nosso corpo e em nossa experiência, essa voz sem palavras que nos confirma no mundo, costumamos acionar uma espécie de radar, para tentar localizar o que é preciso ser feito para despertar a atenção de nossos cuidadores, para sermos vistos e notados, para sermos cuidados. Nesse caso, a voz espontânea dá lugar a uma voz “falsa" que vai se construindo por tentativa e erro. Ela é a voz que sentimos que melhor “funciona”, mesmo não sendo a "nossa" voz. Com o tempo, ficamos craques em nos adaptar ao que “funciona” para agradar ao outro. Nossa verdadeira voz atrofia, e já nem lembramos bem como ela é. Nos tornamos a voz que o outro quer ouvir.

Não é incomum que levemos para o restante de nossos relacionamentos essa voz que aprendemos que “funciona”. Nos casos de atrofia, inconscientemente, passamos a relacionar a experiência de nossa própria voz com o risco de sermos rejeitados. Quando a voz que funciona toma conta, aprendemos a nos tornar pessoas úteis, sempre prontas a servir para não desapontar, sempre em busca de uma “missão" que demonstre para o outro nosso valor. Pessoas que precisaram se tornar úteis para que seus cuidadores as notassem sentem que podem ser vistas como um incômodo, caso realmente expressem o que desejam, ou se permitam ser como são e, é claro, jamais ousam pronunciar a palavra “não”.

Dou um exemplo clínico. Um jovem analisando sente-se sub-julgado em suas relações familiares. Tem uma grande dificuldade de expressar suas necessidades para sua família. Desde a infância, sentiu que vivia uma vida que não era a sua, tentando de tudo para “acalmar” os adultos e “ajudar” em tudo o que fosse necessário. Um de seus sintomas mais recorrentes é uma amidalite que, frequentemente, o deixa afônico em qualquer situação de conflito: sua voz some quando mais precisa dela. Durante sua análise, tem um sonho angustiante. Há algo em sua garganta que o está sufocando. Sente que corre risco de vida, pois não consegue respirar. Finalmente, vomita uma massa escura e espessa, que se transforma em um rio de lama grossa e escura. Nosso trabalho consistiu em fazer uma análise “química” dos componentes desse vômito tão intenso.

A lama negra e espessa alude ao que Jung, inspirado pelos alquimistas, denomina de “nigredo”. A nigredo é a primeira das fases do processo psico-alquímico, onde os conflitos e os sentimentos ainda estão todos misturados: os afetos, os medos, a raiva, a angústia, a insegurança, a vergonha, o desejo de ser amado e aceito, tudo isso misturado numa massa disforme e espessa, que precisa, aos pousos, ser dissolvida e analisada. Só assim, poderá ser compreendida e transformada em uma nova atitude. Do contrário, crescerá e sufocará ainda mais o indivíduo, abafando qualquer possibilidade de surgimento de sua voz. Um dos ensinamentos mais significativos de Jung, em minha opinião, é a lembrança de que não há desenvolvimento psíquico sem atravessar a nigredo da alma.

Para esse analisando, aquilo que não foi possível ser posto em palavras ao longo de toda uma vida, agora era expresso sob o símbolo de um vômito tão potente quanto o choro de meu vizinho bebê. O símbolo é como uma ponte entre o inconsciente e a consciência: é uma espécie de estação de transformação de energia psíquica em atitudes concretas. A partir do trabalho sobre esse símbolo onírico e de outros que foram surgindo no decorrer de sua análise, uma nova voz começou a se insinuar. Uma voz capaz de dizer não para os excessos e manipulações do outro, em distintas esferas de sua vida; uma voz capaz de dizer sim para seus desejos e necessidades. Foi preciso vomitar tudo em sonho, para desobstruir a voz abafada por anos de submissão.

O reencontro com nossa voz potente é um processo. É preciso um tempo para que essa voz original possa se consolidar. Isso não se dá de uma hora para outra: há avanços e recuos; é preciso respeitar os ritmos da alma.

É bastante comum que pessoas que reencontram a potência de sua voz durante a análise causem grande estranhamento nas pessoas ao seu redor, acostumadas a lidarem com a ausência de sua voz, acostumadas com o “sim impotente” daquele que tudo aceita calado e transforma seu silêncio em sintomas físicos e psíquicos, como a amigdalite do jovem analisando, ou como a depressão, em casos mais graves. Estranham, sobretudo, o “não potente” daquele que não mais se sujeita à anulação de sua voz e inicia o processo de estabelecimentos de limites à invasão do outro. O "não" que afirma o direito da pessoa existir por si mesma, de ser autônoma, de respeitar seus ritmos e desejos, de se relacionar com o outro, sem que, para isso, tenha que se submeter.

O sujeito reencontra a voz, a voz liberta o ser.

* psicólogo e psicoterapeuta