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Lágrima: sentimento em forma líquida

Colunista FLÁVIO CORDEIRO fala sobre os sentimentos

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Desde os primórdios da psicanálise criada por Freud, a fala ocupa um lugar central nos tratamentos psicoterapêuticos. Ao transformar em palavras os conflitos, as angústias e os desejos reprimidos, e assim fazendo, trazê-los à consciência, a pessoa experimenta um alívio nos sintomas, organiza sua visão a respeito de si mesma e de suas relações, e no decorrer da análise, a ideia é que se autorize cada vez mais a viver de maneira autêntica, mais próxima de si mesma.

A análise Junguiana, sem deixar de conferir à palavra um importante papel, introduz a imagem como elemento fundamental para ampliação de consciência. Quando a pessoa consegue transformar o objeto de sua inquietação em imagens é possível tornar mais concreto o objeto do conflito, encará-lo de frente, estabelecer com ele um diálogo criativo: ouvir o que as imagens do inconsciente têm a dizer e, a partir daí, atuar com e sobre elas.

Existem,no entanto, circunstâncias na vida nas quais tanto a palavra quanto a imagem são insuficientes. Estamos falando dos estados emocionais mais extremos. Nesses casos uma outra linguagem, muito mais antiga se impõe: o choro.

Há uma frase do escritor angolano Mia Couto que marcou-me profundamente pela grande sensibilidade: “Nascemos e choramos. A nossa língua materna não é a palavra. O choro é nosso primeiro idioma”. Sim, o choro precede a palavra, não apenas na tenra infância, mas também nos momentos em que o pensamento e a razão demonstram-se insuficientes diante de um episódio avassalador.

Nossa cultura reprime fortemente esse idioma natural: trata o choro como sinônimo de vergonha, fraqueza e descontrole. Somos “educados" desde muito cedo, por meio de aforismos, depreciativos a respeito do choro e do chorar: “Engole esse choro”, “Chorar no cantinho”, “Homem não chora” são exemplos do senso comum.

No entanto, chorar é adaptativo, é um mecanismo autorregulador das emoções. O bebê que é ignorado em seu pranto, acaba por se calar, não porque foi “educado”, mas porque desistiu. Desistiu de acreditar em seus cuidadores. Entendeu corporalmente que nasceu em família “estrangeira”, incapaz de compreender o idioma da ternura e do cuidado, que é a linguagem da criança e de toda a pessoa em estado de fragilidade.

Essa desistência poderá ter efeitos psicológicos de longo alcance na qualidade de seus vínculos afetivos. Engoliu o choro. Engoliu junto a amarga sensação de desamparo. A se repetir com frequência essa vivência, uma desconfiança básica em relação a todo vínculo afetivo, poderá se tornar uma incômoda companheira pela vida afora. É alto o preço do choro aprisionado.

Considero a lágrima a emoção em estado líquido. A lágrima não chorada empedra no peito e vira sintoma. Há ocasiões (a perda de um ente querido, uma doença grave nossa ou na família, a perda abrupta de uma condição material estável, uma separação, etc.) nas quais somos colocados inadvertidamente em um estado de vulnerabilidade, análoga somente a que experimentamos quando ainda somos bebês indefesos. Nesses momentos, apenas nosso primeiro idioma, o choro, é capaz de comunicar a real intensidade de nosso estado de alma. Chorar é falar, sem palavras, a respeito de nossa necessidade absoluta de amparo e cuidado.

Quando um exército estrangeiro invade um país e quer lhe colonizar, uma das primeiras medidas é impor-lhe seu idioma e assim calar-lhe as expressões vitais. Nossa cultura estruturada para reprimir o espontâneo em nós, é como essa potência estrangeira: tanto o choro quanto a alegria autêntica (essa que não se compra em loja) são alvos da fúria repressora - que quer tudo, menos sentimento perto de si. Manifestações de sentimento incomodam profundamente o colonizador. A lágrima incomoda, porque ao contrário do que a mitologia da força afirma, é muito potente. Ela nos move e “co-move", mobiliza pelo cuidado e apoio: ela anuncia a possibilidade de uma solução.

Já ensinavam os alquimistas, muito estudados por Jung, que uma "solução" nada mais é do que a aplicação de um solvente sobre um soluto. O solvente mais conhecido é a água, considerada solvente universal. Isso porque a água, e portanto a lágrima, tem o poder de dissolver uma grande quantidade de substâncias.

A lágrima derramada é o solvente que se aplica aos estados mais aflitivos da vida. Para dissolver o que precisa ser dissolvido, é preciso chorar e deixar chorar. É preciso escutar e acolher o que o choro do outro nos diz e nos pede: para além da palavra, pelo gesto, pelo toque, pela presença.

A lágrima abre espaço para o sentir, o sentir é o primeiro passo para o transformar: sentir é uma poderosa solução.

* Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapêuta