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Revogação da Lei Áurea: desumana e inconstitucional

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As mudanças na legislação que proíbe e pune o trabalho escravo, propostas com atrevido cinismo pelos que submetem o poder político ao seu poder econômico inspirados no mais degradante egoísmo, configuram, sem nenhum disfarce, uma pretensão de revogação da Lei Áurea, restabelecendo a escravidão no Brasil.  E, sem qualquer sombra de dúvida, além de serem anti-éticas e grosseiramente ofensivas à dignidade humana, são clara e absolutamente inconstitucionais. É muito expressivo o fato de que pessoas e entidades que por suas atribuições e seu desempenho têm mostrado real e decidido compromisso com a defesa da dignidade da pessoa humana e, de modo especial, com o respeito pela liberdade e pelos direitos fundamentais dos trabalhadores, tenham reagido com grande veemência contra a Portaria 1129, de 2017, do Ministro do Trabalho, que distorceu as regras de fiscalização e controle das condições de trabalho, procurando, com falsa base legal, impedir a aplicação do artigo 149 do Código Penal que define como crime “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”.

Entre os que reagiram contra a malsinada Portaria, exigindo sua revogação, incluem-se entidades representativas de Juízes do Trabalho, Procuradores do Trabalho, Procuradores da República, auditores fiscais do Trabalho e advogados trabalhistas, que divulgaram nota ressaltando que aquela Portaria redefine ilegalmente o conceito de “trabalho em condições análogas à escravidão”. Assinalaram essas entidades que aquela Portaria viola frontalmente convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, ressaltando que isso pode gerar a aplicação de sanções internacionais contra o Brasil. Na realidade, esse tremendo retrocesso em termos de tratamento jurídico da pessoa do trabalhador terá como uma de suas conseqüências a desmoralização do Brasil entre os Estados que mantêm fidelidade aos seus compromissos com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e com os Pactos de Direitos Humanos dela decorrentes.

Entre os pronunciamentos que denunciaram os graves defeitos da Portaria 1129 merece destaque, por sua clareza, objetividade e por sua rigorosa avaliação, o que foi dito pelo ex-Presidente Professor Fernando Henrique Cardoso. Eis o que disse o eminente e experiente homem público e prestigioso sociólogo, em sua página pessoal no Facebook: “Considero um retrocesso inaceitável a portaria do Ministério do Trabalho que limita a caracterização do trabalho escravo à existência de cárcere privado. Com isso, se desfiguram os avanços democráticos que haviam sido consignados desde 1995, quando uma comissão do próprio Ministério, ouvindo as vozes e ações da sociedade, se pôs a fiscalizar ativamente as situações de superexploração da força de trabalho equivalentes à escravidão.”E concluiu: “Espero que o Presidente da República reveja essa decisão desastrada.”

Outra reação de grande importância que merece registro foi a da Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, que não só divulgou manifestação condenando a imoral e inconstitucional Portaria mas em encontro com o Ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, formalizou pedido para que ele revogue a infeliz portaria. Segundo suas palavras, “a proteção legal estabelecida na política pública tem o propósito de impedir ações que “coisifiquem” o trabalhador, deformação que está na raiz do conceito de escravidão”. Acentuou ela que na caracterização da “condição análoga à de escravidão”, constante do artigo 149 do Código Penal, é importante verificar a combinação de fatores que atentam contra a dignidade humana do trabalhador. E enfatizou: “Há casos em que há consentimento do trabalhador, mas em situações como a de coação, o que não é válido sob a ótica do direito”. Na realidade, por sua situação de absoluta dependência, o trabalhador tratado como escravo não tem como resistir ou reagir. Em sua conclusão acentua a ilustre Procuradora que o trabalho escravo viola a dignidade e não apenas a liberdade da pessoa humana. E por essas e outras razões pediu, com grande veemência, a revogação daquela imoral e ilegal portaria.

Além dessas, houve outras manifestações de pessoas e entidades ligadas por sua atividade profissional ao ambiente do trabalho. Assim, por exemplo, líderes sindicais dos fiscais do Trabalho, que conhecem a realidade, manifestaram a intenção de paralisar suas atividades, para não serem usados como cúmplices das violências que seriam acobertadas pela portaria. E se pronunciaram publicamente dizendo que sua ameaça de paralisação tem por objetivo “pressionar pela revogação desse absurdo que á a Portaria 1129”. Além de todas essas manifestações, merece também especial referência a atitude de artistas que, inconformados com essa violência contra a dignidade humana dos trabalhadores, externaram também seu inconformismo.  Entre eles estão Caetano Veloso, Diogo Nogueira, Alessandra Negrini e Letícia Sabatella, que compartilharam um post criticando o governo por essa grosseira agressão à dignidade humana, concluindo que “Temer passou dos limites”.

Por todas essas razões e, com especial ênfase, pela evidente inconstitucionalidade e pela agressão aos valores fundamentais do povo brasileiro e à Constituição que define o Brasil como “Estado Democrático de Direito”, espera-se que ocorra o mais rapidamente possível a revogação da imoral e inconstitucional Portaria 1129, a fim de que sejam resguardas as conquistas humanistas e democráticas do povo brasileiro.

Todos esses argumentos acima referidos são de grande relevância e dão fundamento às reivindicações de revogação da Portaria 1129. A par disso, é extremamente relevante a circunstância de que a aplicação da infeliz Portaria seria uma afronta a princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição e que fazem parte da caracterização do Brasil como Estado Democrático de Direito.  Com efeito, diz o artigo 1º da Constituição que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa humana. Além disso, dispõe o artigo 4º que a prevalência dos Direitos Humanos é um dos princípios que devem ter prioridade no desempenho do Estado brasileiro. E no artigo 5º, que integra o capítulo referente aos Direitos e Garantias Fundamentais está expresso, no inciso III, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, sendo, portanto, frontalmente inconstitucional reduzir o trabalhador à condição de escravo, que é uma degradação da dignidade humana. Assim, pois, além de todos os aspectos negativos evidenciados pelos argumentos dos que se manifestaram contra a portaria exigindo sua revogação, está evidente a inconstitucionalidade da Portaria 1129, que afronta ostensivamente os princípios e as disposições normativas da Carta Magna brasileira.

* jurista