Nesta cidade tão violenta em que vivemos, microclima de um mundo igualmente enlouquecido e violento, achamos que já vimos tudo. A morte comanda o espetáculo macabro que todo dia acrescenta números e identidades às estatísticas já apavorantes que perigosamente estamos nos acostumando a assistir e ler diariamente na mídia.
O mal consegue surpreender-nos a cada momento e das formas mais insuspeitadas. Não chamaria de criatividade a capacidade de inventar e reinventar novas modalidades para pegar de surpresa os corações cruelmente feridos que pensam que nada mais resta para descobrir. Criatividade é apanágio do bem, que flui do Criador. Só se cria quando se colabora com Deus que do nada fez o mundo e tudo que nele existe. Só se cria quando se faz crescer a criação que saiu das Mãos divinas no início dos tempos e já era pensada e desejada amorosamente desde antes deste início.
A capacidade do mal de nos causar espanto sob novo ângulo e nova maneira faz parte de seu dinamismo, insidioso e mortal. Inventa novas e retorcidas maneiras de arrastar os corações humanos ao desespero, à baixeza dos conluios e da desorientação, ao mergulhar na perdição, acreditando que é inevitável e irremissível.
O mundo dos brinquedos parecia preservado da violência malsã que persegue os habitantes do Rio. Pois o que há de mais inocente do que um brinquedo? Feito para desenvolver a capacidade lúdica das crianças, pode divertir também os adultos, para que ativem a memória dos tempos em que, inocentes e acreditando na vida, criavam artesanalmente novos mundos e coisas a partir de sua imaginação, corridas, palavras e gestos.
E de repente uma menina de dois anos e meio, Sofia, foi alcançada pela irracionalidade do mal, enquanto brincava no parquinho de uma lanchonete, no Rio. O pai, um policial, relata que fazia um lanche com a esposa, os avós da menina, enquanto Sofia brincava. Identificou um tiro no som macabro do cotidiano de sua vida profissional e levantou-se para ver o que acontecia.
O instinto materno precipitou as mulheres presentes em direção ao parquinho, para resgatar e proteger seus filhos. A esposa do policial gritava por Sofia, mas a menina não aparecia. Saíram todas as crianças menos ela. No parquinho o pai a encontrou, crucificada no brinquedo feito para dar alegria, divertimento e estimular a criatividade. Tornou-se, porém, instrumento de suplício onde a infância de Sofia foi brutalmente ceifada.
Levada pelos pais ao hospital, a menina não resistiu. Sua alegria e beleza, sua vida que mal começara, chegou ao fim pela bala perdida que se infiltrou no parquinho onde os brinquedos pretendiam ser lugar seguro e colorido para as crianças brincarem.
Os pais da menina saíram do lugar onde moravam e partiram para recomeçar a vida longe do cenário do pesadelo que lhes roubou a filha e a alegria de viver. Esperamos sinceramente que possam reencontrar o caminho da esperança e trazer ao mundo outros filhos que encham suas vidas de encanto como Sofia fez. E que a recordação dela se faça doce com o passar do tempo sobre o amargor da experiência.
No ar, porém, pulsa uma questão séria e inquietante. Aos poucos, a violência vai colocando interditos em nossa vida nesta cidade que chamamos de maravilhosa. Proibe-nos de caminhar por determinados locais, de estacionar em certos horários em algumas ruas. Infiltra-nos medo de andar nas ruas, confinando-nos sempre mais aos shoppings como único lugar mais ou menos seguro para estar. Obriga-nos a blindar carros, a levantar muros, a construir grades.
Vamos consentir que essa paralisante espiral também paralise com suas garras o mundo da infância, dos brinquedos, dos espaços lúdicos? Passaremos a temer também os carrosséis, piscinas de bolinhas, balanços e outros brinquedos que fazem a festa de nossas crianças?
Se assim for, estaremos dando ganho de causa a esse mal que insiste em surpreender-nos e nos quer seus prisioneiros. Certamente o caminho não é por aí, não passa pelo medo. Que a morte trágica de Sofia não transforme nossas vidas em um brinquedo temido porque proibido. Mas que ela nos liberte para lutar com as armas da inteligência e da honestidade, por uma cidade onde as balas não se percam para alojar-se em corpos de crianças inocentes que brincam felizes fruindo sua infância.
Receitas prontas não temos e soluções não são evidentes. Mas contamos, certamente, com a cumplicidade d´Aquele que do nada fez o mundo e a cada minuto nos cria e recria com a inesgotável criatividade de seu amor.
* professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão"(Edusc)