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Nelson Rodrigues: contraditório centenário 

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Não, não celebro aqui o feroz crítico da teologia da libertação, de todo o esforço da Igreja  que despertou minha vocação de teóloga ao  aproximar-se dos pobres.  Não desejo reconhecer e louvar o cronista que cunhou expressões como “padres de passeata” e “freiras de minissaia” para referir-se a homens e mulheres que buscavam, após o Concílio Vaticano II, viver mais radical e verdadeiramente sua consagração a Deus e aos irmãos.  

Seria impossível para mim identificar-me com aquele que encheu páginas e páginas de crônicas e artigos com duras palavras contra  figuras que sempre foram objeto de minha admiração e inspiração: Dom Helder Câmara,  o padre Fernando Bastos d'Ávila, SJ, e o doce Alceu de Amoroso Lima. E que, enquanto isso, exaltava personagens mal-humorados e amargos (embora talentosos) de nossas letras, como o doutor Corção.  

Tampouco me agrada – mais: repugna-me – o descarado machismo daquele que inventou a frase que diz que as mulheres normais gostam de apanhar.  E sempre descreveu a mulher em abjeta submissão ao homem, sua escrava por gosto e opção e não por opressão e violência.  

E, no entanto, não posso deixar de homenagear, por ocasião de seu centenário, o genial escritor de nosso cotidiano brasileiro e carioca; o artista da palavra, que encontrou a expressão adequada e certeira para descrever as paixões ocultas e explícitas das tragédias ou comédias que povoam a vida urbana de todo um povo; o apaixonado e talentoso comentarista esportivo que edificou o Maracanã como templo e elevou os passes de Garrincha e Pelé a uma altura quase litúrgica.  

Minha sensibilidade não pode deixar de comover-se diante do coração emotivo até o extremo do pai que teve que chorar a prisão política  do filho e a cegueira da filha temporã, e o fez com dignidade e discrição.  E minha razão extasia-se diante da inteligência penetrante do escritor, do dramaturgo, do cronista, que encontrou as palavras e metáforas mais que certas para desenhar diante dos leitores e espectadores a vida como ela é.  

E percebo, então, e não sem surpresa, que essa ambiguidade, essa contradição, esse paradoxo é constitutivo da personalidade e do talento de Nelson Rodrigues.  Percebo que não existe um Nelson sem o outro e que é preciso admirá-lo em bloco, ainda que criticamente, sem tentar reduzi-lo ou segmentá-lo em estanques divisões insustentáveis.  

Talvez a constatação desse fato seja uma derivação de sua imortal frase (entre tantas, infinitas outras) que afirma ser toda unanimidade burra.  Nelson, com sua imensa sensibilidade e seu fino humor, percebeu desde sempre que o humano não comporta fixismos radicais nem definições inapeláveis.  Mas, pelo contrário, existe atravessado de pluralidade, de sadia relatividade, onde negativo e positivo se entrelaçam, deixando perceber a inevitável proximidade entre pecado e graça.  

É assim que em seu universo literário, em suas crônicas e obras teatrais encontra-se muitas vezes a virtude na prostituta ou no ladrão, e não na senhora mãe de família impecável ou no cidadão trabalhador e responsável.  Os sentimentos humanos são mesclados, fazendo o amor conviver com o ódio, a raiva preceder um abismo de mansidão e bondade, e a mais solícita e humilde ternura esbarrar a cada momento com um oculto e soberbo desdém.  

Captando com rara agudeza isso que é o drama  e a grandeza do ser humano, Nelson soube descrevê-lo com maestria e indiscutível talento. E essa lucidez não o fazia descrente e cético em relação a seus irmãos e semelhantes.  Cultor da amizade, nós o vemos descrever seus amigos com palavras cheias de afeto e emoção.  São seus personagens constantes e queridos Otto Lara Rezende, Miguel Lins, Mário Filho, entre outros.  

Neste controvertido centenário, é digno e justo, portanto, celebrar o homem que tinha coração e dizia e assumia ser o sentimentalismo seu ponto forte.  E também e mais ainda, o apaixonado pela literatura e pela palavra escrita.  Em tempos em que a imagem pretende adquirir supremacia sobre a palavra, Nelson, do alto de seus 100 anos imortais, afirma – e nós o secundamos – que “o  texto literário continuará existindo daqui a 1.200 anos. Ele não morre, porque se ele morrer o mundo começará a morrer junto.”

*Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do amor' (Ed. Rocco), entre outros livros.