Tramita no Congresso Nacional a PEC 37/2011 que, se aprovada, impedirá que o Ministério Público exerça qualquer atividade de cunho investigatório, a qual passaria a ser de atribuição exclusiva das “polícias judiciárias” (polícias Federal e Civil). O autor da proposta, deputado Lourival Mendes (PTdoB-MA), que é também delegado da Polícia Civil, argumentou que pela Constituição federal o MP nunca teve a competência ou atribuição de realizar investigações. Não é o que pensam os tribunais brasileiros, já que a maior parte dos julgados dos tribunais superiores inclina-se pela possibilidade.
Como se sabe, a proposta provocou a reação imediata do Ministério Público, temeroso de perder atribuição que, queiramos ou não, lhe confere um considerável poder em face das instituições policiais. Além disso, algumas organizações da sociedade civil compartilharam do inconformismo ministerial e aderiram à campanha pela rejeição da PEC. Como pano de fundo da batalha que se trava no Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal iniciou no mês de junho do ano corrente o julgamento do Recurso Extraordinário nº 593.727 e do Habeas Corpus nº 84.548, os quais discutem a questão sob o prisma das normas constitucionais vigentes. Quando o julgamento foi interrompido, dois ministros (Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski) votaram pela possibilidade de o Ministério Público conduzir investigações quando os investigados fossem membros da própria instituição, além de policiais, desde que, notificada, a Polícia se omitisse.
Outros dois (ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello) votaram a favor da investigação ministerial sempre que se tratasse de crimes contra a administração pública ou de abusos de autoridade, independentemente da qualidade do autor, de forma a complementar a atividade policial. Já os ministros Ayres de Britto e Joaquim Barbosa votaram pela ampla possibilidade de investigação por parte do Ministério Público. O ministro Luis Fux pediu vista dos autos.
Mais importante do que eventuais interesses corporativos das duas instituições envolvidas na discussão, as quais disputam parcelas de poder há tempos, muitas vezes de forma antirrepublicana, é buscar aferir o que seria importante para a sociedade como um todo. Para tanto é importante considerar que, coincidentemente ou não, a presente discussão sobre o poder investigatório do MP surgiu quando os responsáveis pela persecução criminal começaram a promover uma mudança de paradigma no exercício da função de acusar.
Tradicionalmente conhecida como a “Justiça dos 3 Ps” (por respeito ao leitor abstenho-me de explicar o significado de cada um deles), o sistema judiciário criminal de nosso país passou a ser frequentado por réus do alto escalão político e econômico. A primeira reação a essa mudança de paradigma se consolidou com a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar supostos excessos no uso de interceptações telefônicas, a chamada “CPI dos Grampos”. Na sequência, a prisão do banqueiro Daniel Dantas acabou por servir de elemento catalizador para elaboração de uma súmula vinculante do STF, que regulamentou o uso de algemas, ato, aliás, que é solenemente ignorado no cotidiano de nossas delegacias, mas cumprido à risca nas sempre espetaculosas operações policiais que alcançam investigados pertencentes às camadas referidas.
Sugiro aos estudiosos e ao leitor em geral que promovam uma rápida pesquisa nos julgamentos de casos onde foi questionado o poder investigatório do MP. Nenhum deles tratava de réus pertencentes às camadas sociais ou econômicas mais baixas de nossa sociedade. Então, para além da deplorável disputa de poder que realmente subjaz a essa discussão, é preciso deixar claro que a aprovação da mencionada PEC, na prática, acabará por beneficiar somente aquelas pessoas que hoje em dia são sujeitas à investigação ministerial. O cidadão comum, que não exerce qualquer parcela de poder e que não se relaciona criminosamente com quem a detenha, não será afetado pela aprovação ou rejeição da PEC, já que nenhuma das diligências promovidas pelo MP tem por objetivo apurar crimes por ele praticados.
Aliás, em termos precisos, sequer seria possível dizer que o Ministério Público “investiga” algum fato ou pessoa. É que a instituição não possui os recursos materiais para tanto, uma vez que em sua estrutura interna não há investigadores profissionais; não pode realizar, diretamente, interceptações telefônicas, e os seus membros não possuem, na maioria, conhecimento cientifico de inteligência. Logo, quando se fala que o Ministério Público “investiga”, normalmente se trata de atividades como a de colher singelos depoimentos, requisitar informações diretamente a órgãos públicos e outras semelhantes. A única particularidade está no fato de que as mesmas se realizam fora de um inquérito policial, este conduzido exclusivamente por um delegado.
Ainda cabe mencionar que a proposta de impedir a investigação pelo MP, indiretamente, acaba por contrariar diversos tratados anticorrupção assinados pelo Brasil, como a Convenção de Palermo e que a possibilidade de investigação pelos órgãos acusatórios é tese mais do que consagrada em países que servem de exemplo para o nosso sistema jurídico, notadamente nos Estados Unidos, França, Itália e Espanha. Inclusive no Tribunal Penal Internacional.
Aliás, quanto à Convenção de Palermo, o seu artigo 9.2, sob o título de medidas contra a corrupção, assinala que “cada Estado Parte tomará medidas no sentido de se assegurar de que as suas autoridades atuem eficazmente em matéria de prevenção, detecção e repressão da corrupção de agentes públicos, inclusivamente conferindo a essas autoridades independência suficiente para impedir qualquer influência indevida sobre a sua atuação”.
Ora, como se sabe, as polícias são fortemente subordinadas ao Poder Executivo e não são dotadas da necessária independência capaz de evitar a influência de quem se encontra no poder. Logo, por mais operosos que sejam os delegados de polícia, e muitos que conheci são dignos de todo o louvor, é certo que de uma hora para outra podem, por um simples ato do chefe da polícia, ser substituídos a partir de uma determinada investigação. Sabe-se que os chefes das polícias civis são nomeados pelos governadores e o da Polícia Federal nomeado pelo ministro da Justiça.
Mas não é só.
Além de a aprovação da PEC ser inconveniente, considerando os seus efeitos nocivos à sociedade brasileira, ela é de todo inoportuna, já que a nossa Suprema Corte sinalizou no julgamento interrompido que deverá reconhecer o poder de o MP comandar investigações criminais, mas que será estabelecida uma espécie de regra de conduta para a atuação do Ministério Público, já que hoje em dia não existe qualquer norma que limite a atuação dos membros da instituição na chamada “investigação direta” o que pode levar ao arbítrio.
A sociedade brasileira espera que os senhores parlamentares, ciosos da sua responsabilidade, rejeitem a citada proposta que somente beneficiaria setores vinculados ao crime organizado em nosso país.
* Flávio Lucas é juiz federal.