Sempre nos pareceu muito evidente afirmar que o cristianismo é uma religião. Pois, na verdade, isso não é tão claro assim. Cada vez mais a teologia se inclina por afirmar que o cristianismo não pode ser definido como uma religião. O que significa isso? Na verdade, muitas coisas e que, se pensarmos bem, não irão nos parecer tão estranhas. Comecemos do começo. Ou melhor: comecemos por Jesus de Nazaré. Será que podemos afirmar que Jesus queria fundar uma religião?
Achamos que não. Jesus já tinha uma religião e não pensava em escolher outra. Era um judeu piedoso e fiel. O que o incomodava, justamente, era aquilo que os especialistas da religião haviam feito com a fé de Israel. Ao ler os quatro evangelhos, vemos claramente que a disputa de Jesus com os mandatários de sua religião se centra na distorção ou deturpação da imagem de Deus que os que se acreditavam donos da religião, do Templo e da Lei haviam feito. Haviam posto sobre os ombros do povo um peso tão absolutamente insuportável que era impossível de carregar. Um sem-número de rubricas, ritos, prescrições.
Uma severidade implacável para com o cumprimento de todas essas mínimas normas e uma crueldade com as pessoas mais simples e humildes que não conseguiam cumpri-las por não terem condições de realizá-las. Jesus percebia que segmentos inteiros do povo eram declarados sem Deus: doentes, leprosos, pecadores. E que várias categorias de pessoas eram tratadas como cidadãos de segunda categoria dentro deste mesmo povo: mulheres, crianças.
A esses, então, Jesus anuncia uma boa notícia, um Evangelho: o projeto do Pai — o Reino é para eles também. Mais ainda: eles serão os primeiros a entrar, pois são humildes, se reconhecem pecadores, se sabem necessitados de misericórdia e perdão, e não se acham donos inexpugnáveis e sobranceiros do dom de Deus, que ninguém pode se arvorar em possuir.
Ao fazer isso, Jesus não queria atacar nem agredir a religião de seus pais, na qual havia nascido e a qual amava. Desejava apenas que a pureza do ideal da Aliança que sustentou a história e a caminhada de Israel pudesse continuar e crescer em toda a sua pureza. Porém, por isso mesmo, foi considerado blasfemo. Acusaram-no de agir contra a religião, de colocar em perigo a religião vigente que emanava do Templo de Jerusalém.
Fazem, então, um complô para matá-lo. E efetivamente o matam. É algo que deve nos fazer pensar que quem matou Jesus não foi um grupo de bandidos e fora da Lei. Ao contrário, foram homens considerados de bem, guardiães da ordem e da religião. Por crê-lo inimigo da religião de Israel, acreditaram dever eliminá-lo. Temiam que ele quisesse acabar com a religião e trazer uma nova. Na verdade, a proposta de Jesus não é a de uma religião, e sim de um caminho: o caminho do amor, da justiça, da fraternidade.
O caminho da experiência de ser filhos de um Deus que é Pai bondoso, amoroso, misericordioso. E, por isso, ser irmãos uns dos outros. Assim fazendo, Jesus desloca o eixo da presença de Deus do Templo para o ser humano. Anuncia que quando alguém está ferido à beira do caminho há que deter-se e socorrê-lo, atendê-lo com todo o amor e desvelo possíveis. E não ir correndo para o templo porque se está atrasado para a celebração.
Quem se detém e pratica o amor para com o próximo ferido e desamparado encontra a Deus. Mesmo que seja um idólatra, como o samaritano do capítulo 10 do evangelho de Lucas. Mesmo que esse Deus se revele fora do Templo e das rubricas da Lei. Com a morte de Jesus e a experiência de sua ressurreição, seus seguidores começaram a anunciar seu nome, e um movimento de fé criou-se em torno dele. E essa fé necessitava de uma religião para expressar-se. Por isso, tomou os ritos do judaísmo e acrescentou outros.
O cristianismo nascente tentou ficar dentro da sinagoga. Não foi possível, e o próprio Paulo — judeu filho de judeus, circuncidado ao oitavo dia, da tribo de Benjamin, formado aos pés de Gamaliel — com muita dor na alma, foi quem chefiou o movimento de ruptura e ida aos gentios. Espalhou-se pelo mundo a nova proposta, cresceu e configurou todo o Ocidente. Aquilo que começara humildemente em Nazaré da Galileia, com o carpinteiro fazedor de milagres que chamava Deus de Abba — Paizinho — tornava-se, sobretudo depois do século IV, a religião mais poderosa e hegemônica do mundo.
Foi preciso que houvesse a virada da modernidade, o declínio do mundo teocêntrico medieval, que o cristianismo perdesse o poder que tinha de instância normativa dentro da sociedade, para que aparecesse a verdade inicial em toda a sua pureza. O cristianismo não é uma religião. Ou, se for, é uma religião da saída da religião. É um caminho de fé que opera pelo amor, um estilo de viver, nas pegadas de Jesus de Nazaré, que passou pelo mundo fazendo o bem. O que isso quer dizer para nós hoje? Que tudo que é religioso é mau? De forma alguma.
Os gestos, os rituais, as normas, as fórmulas religiosas são boas, desde que enunciem a verdade de uma fé, de um sentido de vida que se expressa na abertura a Deus e ao outro. E por isso são relativos. Pode ser que algumas expressões religiosas que foram muito adequadas a determinada época histórica sejam extremamente inadequadas a outra ou outras. O único absoluto é Deus. O resto... é resto mesmo. Isso é que, hoje como ontem, o cristianismo é chamado a proclamar diante do mundo.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do amor' (Ed. Rocco). - [email protected]