O que a vida separou, a morte uniu. Enquanto a Casa da Marquesa de Santos permanece em obras e fechada à visitação — embora mantenha pesquisas agendadas —, parte de seu acervo está no Museu Nacional, residência da família imperial, na Quinta da Boavista, onde morou o amante da marquesa, Dom Pedro I. A casa de Domitila de Castro Canto e Melo, mais longeva concubina do fogoso imperador, foi um presente dele, para que pudessem viver próximos. Há historiadores que apimentam a história e afirmam que havia uma passagem secreta entre as duas residências. De fato, havia um túnel subterrâneo no palácio que conduzia à torre onde ficava a cozinha, já demolida — o que deixa a hipótese ainda mais condimentada.
Conforme Marco Aurélio Caldas, chefe da museologia do Museu Nacional, quando Domitila se mudou para São Cristóvão foi morar numa casa já demolida. Da sacada leste do palácio, o imperador podia observá-la. “Ele utilizaria uma porta ao lado de onde hoje é o Jardim das Princesas — criado por Pedro II para suas filhas — para pegar seu cavalo e rumar em direção à marquesa”, descreve.
Tataraneto de Pedro I, o fotógrafo D. João de Orleans e Bragança conhece bem a paixão de seu antepassado pela Marquesa de Santos, mas faz ressalvas à forma como o tema é abordado: “Naquela época faziam-se casamentos políticos, alianças formadas por arranjos diplomáticos. Ele sequer conhecia a Imperatriz Leopoldina. Domitila foi uma grande paixão e acho importante falar sobre a vida privada das pessoas públicas em uma democracia. No entanto, sem deixar de lado o estadista que ele foi. Mesmo após ficar viúvo, no auge do romance, ele rompeu com a marquesa por achar que lhe faltava estatura para tornar-se imperatriz. Quando ela começou a atrapalhar sua vida pública, o imperador priorizou a nação em relação à sua vontade pessoal”.
Quem relata esse romance em detalhes é a escritora Mary del Priori no livro “A carne e o sangue” (Rocco). Domitila é descrita como uma “morena forte, dona de olhos brilhantes (...) uma dessas paulistas louvadas pelos viajantes estrangeiros como moças belas, de modos nobres e graciosos”. Ela tinha 25 anos quando conheceu o ainda príncipe. Há algumas versões para o primeiro encontro: ela o teria procurado para pedir proteção contra
o processo que lhe movia o marido; eles teriam se cruzado nas ruas da cidade, “ela carregada numa cadeirinha por dois escravos”; ou teriam se encontrado nos dias que antecederam a entrada do príncipe a Moinhos, perto do Rio Ipiranga, em São Paulo. “Ali, a família Canto e Melo tinha uma propriedade onde Dom Pedro pôde descansar de sua longa jornada”, diz Priori, que vai mais longe: “Pela primeira vez, ele se encontrava diante de uma mulher com quem podia compartilhar uma relação de igual para igual”.
Domitila, segundo a escritora, sabia o quanto valia. Era fruto da nobreza portuguesa e tinha parentesco distante com Dona Inês de Castro, que entrou para a história como a rainha coroada depois de morta. O pai da marquesa passou pelo Regimento dos Voluntários de Cavalaria, de Infantaria de Santos e de Cavalaria de Linha. A mãe, por sua vez, descendia de bandeirantes, governadores e pregadores. Contudo, tratava-se de uma plebeia. “D. Pedro e Domitila apressaram-se a viver um amor profano (...). Ele encontrou na amante uma mulher livre e apaixonada que não poluía o prazer com escrúpulos e orações”, relata Priori. O casamento de Domitila terminou de forma turbulenta, e ela se mudou para a Corte em 1822, atendendo ao chamado do já imperador, com quem teve cinco filhos, dois meninos, logo falecidos, e três meninas.
Dom Pedro I comprou o sobrado ao lado do Palácio de São Cristóvão para a amada por 4 contos de réis, de acordo com a escritora, em 20 de maio de 1826. Designou o arquiteto francês Pierre Joseph Pézerat para reformar o palacete que adquiriu, então, um estilo neoclássico. Em 4 de abril de 1825, Domitila foi nomeada Dama Camarista da imperatriz e, no dia de seu aniversário, em 12 de outubro de 1825, o imperador assinou o título de viscondessa, depois alçada a marquesa, “por merecimento próprio”, o que levou a Imperatriz Leopoldina a comunicar ao pai que “era extremamente infeliz”.
Após a morte da imperatriz, Priori relata que a vida privada do imperador era “recheada de episódios escandalosos, que o diminuíam aos olhos do povo”. Diante da oposição popular e política, Pedro I acabou por despachar a amante para São Paulo. Contudo, a relação só foi rompida, após sete anos, depois que Pedro I viu o retrato da jovem Amélia de Leuchtenberg e teve a certeza de seu novo casamento, em 1929, quando o solar foi vendido. E, dessa vez, reza a história que o casal imperial foi feliz para sempre.
Batons na cueca
As peças expostas na Sala do Trono do Museu Nacional são incapazes de comprometer a honra de quem quer que seja. Das 66 peças provenientes da casa, a maioria está em péssimas condições, guardada no depósito. Muitas pertenceram à Imperatriz Carlota Joaquina, mãe de Pedro I, e até o ‘trono’, na realidade, era a cadeira usada por D.João VI na cerimônia de beija-mão. Sua curiosidade é ter sido pintada de preto, em luto pela morte de Dona Maria, sua mãe. Essa profusão de peças que pertenciam à família imperial reunidas na casa da amante de Dom Pedro I explica-se pelo leilão de 14 lotes logo após a Proclamação da República — cujo mais valioso lote simplesmente desapareceu —, na estreia da roubalheira republicana, que juntou tudo o que pertencia à família real num mesmo saco de gatos, logo após sua partida para o exílio europeu.
Os únicos “batons na cueca” da coleção de Domitila, que constam do acervo on-line da rede de museus do estado e não estão em exposição no Museu Nacional, são um pequeno lenço de cambraia do século 19, bordado a mão com a insígnia da coroa imperial, e um console de madeira com uma placa de metal onde consta “PI”. Se as várias cartas trocadas entre os amantes, assinadas por Titila e Demonão, acabaram públicas, parece que houve cuidado maior quanto aos bens legados à posteridade. O restante do acervo pode ser visitado em duas exposições no Museu do Ingá, em Niterói: “Terras fluminenses” e “São Cristóvão: imagens do Palácio”.
A primeira fase das obras da Casa da Marquesa de Santos, que consumiu R$ 4.650.248,73, já foi realizada no projeto da secretaria estadual de Cultura, em parceria com a Fundação Getulio Vargas. Ali será apresentada a moda como um elemento da identidade do país, espaço de preservação do patrimônio.