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Grupo de 50 refugiados da Venezuela deixa a fronteira em busca de comida e emprego no Rio

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Ainda no governo de Hugo Chávez, o desemprego crescente na Venezuela levou a família de Yelitza Lafont a se mudar de cidade, em 2000. A professora de Biologia, seus cinco filhos e seu marido deixaram a capital Caracas e percorreram cerca de 500km até a cidade de Maturín, de 325 mil habitantes. Estabelecidos na casa de parentes, e com o pai da família empregado, pareciam livres da penúria e da falta de recursos até para a compra de alimentos. Lêdo engano. Aqueles anos foram tempos que a professora classifica como “assustadores”. À escassez de empregos, logo se somaram a falta de liquidez e a inflação galopante, que hoje passa de 1.000% ao mês, segundo o Fundo Monetário Internacional. Cansada de passar fome, Yelitza encarou a travessia para o Brasil com um de seus cinco filhos, deixando os demais para trás, com o pai. O objetivo era enviar dinheiro para que a família comprasse comida. A professora faz parte de um grupo de 47 mil venezuelanos que apostaram no Brasil para reestruturar suas vidas. Na última terça-feira, Yelitza chegou ao Rio, com outros 49 conterrâneos. Eles integram um projeto de “interiorização”, por meio do qual os imigrantes são levados da fronteira, em Roraima, para outros estados do país. São acolhidos por ONGs, em parceria que inclui o governo brasileiro  e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). 

“Em pouco tempo o salário do meu marido não dava nem para a alimentação. Quando tínhamos o café da manhã, faltava almoço. Quando almoçávamos, faltava o jantar. A prioridade eram as crianças. Eu e meu marido cansamos de passar fome para que sobrasse algo para nossos filhos. Decidi arriscar, só não imaginava o quão difícil seria”, avalia.

Sem dinheiro nem para a passagem de ônibus que os levasse à fronteira com o Brasil, Yelitza recorreu a uma irmã que vive na Alemanha. Com 6 milhões de bolívares doados (o equivalente a R$ 200, pelo câmbio oficial), tomou um microônibus de Maturín a Santa Elena de Uairén. Depois, era preciso chegar a Pacaraima, no extremo Norte de Roraima, e, por último, a Boa Vista, seu destino final. Depois de 14 horas de viagem até Santa Elena, faltou dinheiro para a última etapa da empreitada. O jeito era completar a pé os últimos 228km dos 999 até o Brasil. 

“Éramos um grupo de sete pessoas, sendo três mulheres. Já estávamos exaustas e não conseguíamos completar o trajeto. Foi quando tomaram a decisão de juntar todo o dinheiro que o grupo tinha e pagar a passagem de ônibus das mulheres”, conta. Aos homens, restou a perigosa caminhada.

“Meu filho foi sequestrado no meio do caminho. Quando cheguei na Praça das Águas (Boa Vista), e ele não aparecia, entrei em desespero. Mas só me restava esperar. Ele e um outro conhecido nosso conseguiram fugir de um bando armado. Estão vivos por um milagre”, recorda. 

Yelitza não imaginava que o futuro que estava por vir exigiria ainda mais coragem. Na Praça das Águas, juntou-se ao grupo de venezuelanos que dormia em cima de papelões, no Centro de Boa Vista (RR). A alimentação durante quase toda a semana vinha de restos de comida deixados por brasileiros. As quartas-feiras eram “dias especiais”. Era o dia que o supermercado Novo Tempo, o principal da região, jogava fora restos de pães e queijos. Tudo recolhido pelos nascidos na República de Bolívar.   

Ao longo dos quatro meses que viveu em Boa Vista com o filho, Yelitza conta que conseguiu fazer bicos, e destinava todas as diárias para a família, em Maturín. 

Após quatro meses vivendo na rua, conseguiu vaga num abrigo brasileiro, e teve a oportunidade de ser enviada ao Rio. “Só conhecia a cidade pelo carnaval, ouvia falar na TV. Estou apreensiva, mas sei que foi o melhor a fazer. Com o pouco que já consegui mandar à Venezuela, meus filhos passaram a se alimentar bem. Não comem mais casca de aipim cozida. Quero trabalhar mais. Costumo dizer que trouxe duas mochilas. Uma de roupas e outra repleta de esperança e fé”, diz. 

A decisão de interiorização divide muitos venezuelanos. Enquanto se está em Roraima, estado fronteiriço com a Venezuela, a volta para casa é mais fácil. Com a transferência para estados brasileiros mais distantes, como Rio, Pernambuco e Paraíba, a distância da família cresce. 

A separação tem feito o mestre de obras Jefferson Pereira, de 41 anos, andar cabisbaixo. Pai de oito filhos, deixou metade de sua prole no país de origem. Para tentar a vida no Brasil, teve que vender seu carro. Todo o dinheiro da venda, cerca de R$ 280, foi empregado nas passagens de ônibus. Após um mês em meio em Roraima, divide uma casa com outras famílias no Itanhangá, sede da ONG Aldeias Infantis. 

“Jamais imaginei que teria minha poupança completamente consumida e não teria serviço por conta da alta inflação. Só me resta empreender no Brasil”, diz ele, enquanto serve seu filho menor com iogurte, na cozinha de uma das quatro casas ocupadas por venezuelanos. 

Pelo programa, mantido com recursos da ONU, os venezuelanos devem viver, no mínimo, três meses nas dependências da ONG parceira, até serem devidamente empregados e conquistarem sua autonomia. O prazo para que isto aconteça vai até seis meses, quando terão sua situação avaliada por gestores da iniciativa.