Quando Estácio de Sá fundou a cidade do Rio de Janeiro, em 1565, a pedra fundamental foi lançada na paradisíaca faixa de areia entre os morros Pedra do Cão e Pão de Açúcar, hoje patrimônios da humanidade pela Unesco. Foi ali que mais tarde um aterro originou o bairro da Urca. Há 40 anos, uma batalha promovida pelos moradores motivou a prefeitura a criar uma moderna legislação que ajudou a preservar as características do aprazível bairro da Zona Sul, o Projeto de Estruturação Urbana (PEU) da Urca. Foi ele que impôs um freio à especulação imobiliária e, agora, está na mira da prefeitura.
Este foi o tema que abriu a reunião da associação de moradores do bairro (Amour) na reunião deste mês, presidida por Pedro Ferraz: “O ponto fundamental da legislação proposta (pela prefeitura) refere-se ao Artigo 54 do Projeto de Lei Complementar (PLC) 57, que revoga todos os PEU, inclusive o de nº 001 da cidade do Rio de Janeiro, aprovado pelo Decreto 1446 de 2 de março de 1978, de proteção ambiental da área do bairro da Urca e preservação paisagística dos morros do Pão de Açúcar, da Urca e da Babilônia. O PEU da Urca é o que tem mantido a qualidade de moradia do bairro e acreditamos que não precisa ser alterado”.
Para o arquiteto Hugo Hamann, conselheiro da Associação de Moradores, que trabalhou na confecção do PEU, mudanças podem ser feitas em bairros decadentes, e não estabilizados, como a Urca, que não tem para onde crescer. “O Pão de Açúcar é tombado e, com a criação da Área de Proteção Ambiental (APA) de 1988, também foram tombadas a amurada do bairro, a ponte do Quadrado e o espelho d’água. O PEU foi um trabalho muito bem feito, que, pela primeira vez, tocou na questão da densidade habitacional. Há bairros onde cabem mudanças, porém não é o caso da Urca, que tem 200 casas preservadas, gabarito máximo de cinco andares com pilotis e uma população de sete mil habitantes. Todos moram lá há mais de 30 anos, se conhecem e querem manter seu modo de vida”, argumenta.
Além do crescimento da violência do bairro onde moram o interventor federal, general Braga Netto, e o secretário de Segurança Pública, general Richard Nunes, já noticiado pelo JB, dessa vez o pior é que a Secretaria Municipal de Urbanismo confirma o temor dos moradores em nota oficial enviada ao jornal. “A nova legislação extingue o PEU da Urca sim, mas todas as leis de proteção ambiental, cultural e paisagísticas continuam valendo e tendo prevalência sobre a nova lei. Trata-se de uma mudança que estamos fazendo na cidade inteira, reorganizando os espaços, misturando mais os usos, mas estabelecendo limites. Hoje temos um decreto grande, que engloba a cidade inteira. O que iremos fazer é unificar as legislações para facilitar nomenclaturas, licenciamentos, preservando o espírito de cada legislação local, mantendo o mesmo zoneamento. O que regula os usos hoje é uma tabela, já ultrapassada, pois não atende aos novos usos. Com a nova lei (LUOS), essa tabela desaparece e nós passamos a avaliar as permissões, de acordo com os impactos das atividades para a vizinhança — fluxo de carros, pessoas, poluição, trânsito — e serão estabelecidos limites diferentes para ruas residenciais e comerciais”, alega a secretaria.
Ainda segundo a Secretaria Municipal de Urbanismo, “a LUOS que está sendo programada para a Urca mantém as mesmas regras do PEU em relação a gabaritos, taxa de ocupação e índice de construção”.
O fato é que a legislação em vigor ajudou a manter o jeito de cidade do interior da Urca, com casas antigas e prédios baixos que não afetam o skyline (perfil) para quem observa o charmoso bairro do Aterro do Flamengo, harmônico, ao pé do Pão de Açúcar. O mesmo ocorre para quem percorre suas ruelas sinuosas e silenciosas, uma exceção na cidade maciçamente ocupada pelos altos prédios e trânsito caótico. Durante a reunião da associação de moradores, Ferraz manifestou preocupação justamente sobre questões citadas na nota acima, ou seja, os riscos do aumento populacional e do tráfego, estrangulamento das redes de água e esgoto, além das questões de segurança e transportes.
O que mais preocupa em relação à resposta da prefeitura são a menção a “novos usos” e a referência a “ruas comerciais”, inexistentes no bairro de características residenciais, pontuado por alguns estabelecimentos comerciais, como um supermercado, banco, eventuais consultórios, escritórios e alguns restaurantes. A prefeitura acrescenta que “a principal mudança é que atividades que acontecem hoje irregularmente serão legalizadas (professor particular, ateliê de pintura, advogado e profissionais liberais), que podem ser legalizadas porque não causam impacto na vizinhança. Se for para situações maiores como mercado, restaurante ou prédios comerciais, aí não se aplica.” Os moradores desconfiam: que interesses estariam por trás de tudo isso?