Em 2011, a fisioterapeuta carioca Raquel Spinelli, moradora do Morro da Providência, ganhou um concurso da Agência de Redes para a Juventude para tocar seu próprio negócio. Desde então, como diz o nome da OSCIP que fundou, “Providenciando a favor da vida”, o aborto não é o tipo da causa que defende. Porém, após a vitória do sim na Irlanda, um dos bastiões da igreja católica na Europa, Raquel acredita que a decisão possa influenciar na luta pela descriminalização do aborto no Brasil, para preservar a vida sobretudo das maiores vítimas: mulheres negras e pobres. O tema será discutido este mês pelo STF.
A Irlanda, bastião da igreja católica na Europa, acaba de aprovar o aborto. A Igreja também seria uma das maiores forças contrárias à descriminalização no Brasil. Você acha que a vitória das mulheres irlandesas pode trazer alguma in?uência a nosso país?
Certamente quando um grupo luta por algum tipo de direito e consegue conquistar alguma vitória política, a tendência é influenciar os movimentos por todo o mundo, que lutem pela mesma causa.
Você conhece exemplos de meninas/mulheres que já passaram por isso, na Providência ou em outras comunidades do Rio? Poderia entrar em mais detalhes sobre esses dramas?
Conheço alguns casos, sim, embora meu trabalho seja mais voltado à vida. Um dos motivos que me levou a criar a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) “Providenciando a favor da vida” foi ter amigas que engravidaram cedo, sem apoio do pai. Já tive relatos de mulheres com fortes traumas por terem feito aborto. A verdade é que a assistência à saúde aqui no Brasil não tem dado conta de acompanhar e muito menos de tratar mulheres que passam por uma gestação indesejada. Nem mesmo possuímos políticas públicas realmente efetivas, tanto de educação sexual e reprodutiva, quanto de planejamento familiar.
Neste momento o Supremo Tribunal Federal pode corrigir esse código penal anacrônico, a ministra Rosa Weber convocou audiências públicas para este mês para tratar a questão da descriminalização do aborto. Qual a sua expectativa em relação a essa possibilidade?
Acredito que sempre temos que lutar em favor da vida. Se a vida de muitas mulheres está se perdendo por questões políticas, algo precisa ser feito. A regulamentação da prática do aborto é necessária principalmente para a proteção da vida das mulheres negras e pobres e também de bebês, que passam por procedimentos abortivos indevidos. O assunto ainda precisa ser amplamente estudado e debatido, com a devida participação de pesquisadores especializados no assunto, bem como de líderes dos movimentos, para que consigamos chegar a um projeto de lei coerente com as nossas necessidades.
Na sua opinião, quais são as forças e setores que impedem que a descriminalização do aborto seja aprovada no país?
Muitos são estes fatores, mas acho que a falta de entendimento e clareza sobre o assunto levam muitas pessoas a opiniões precipitadas e, por isso mesmo, ignorantes. A proibição imposta pelo conservadorismo mostra ao longo da história que proibir não impede que o aborto aconteça. Quando falamos em “ proibir a descriminação”, talvez passe pela nossa mente que a “ permissão ao aborto” aconteça em qualquer circunstância, porém, não acredito que seja assim que funciona. Prefiro falar em regulamentação da prática: quando é permitido e quando não é, e sob quais circunstancias e, a partir dai, se definir politicamente uma série de práticas necessárias de apoio e suporte à mulher que chega a um centro de saúde com a necessidade ou desejo de um aborto, pois certamente outras questões, que só cabem a ela, antecederam a sua decisão.
Você vê ligação entre a criminalização do aborto com os índices de mortalidade infantil e aumento da violência?
Um estudo publicado na revista brasileira de epidemiologia 20, 46-60, de 2017, analisou as taxas de mortalidade infantil e as principais causas de morte no Brasil, de 1990 a 2015. Mostrou que a taxa de mortalidade na infância vem sofrendo redução ao longo desses anos. E ainda que os principais motivos de mortalidade são: a prematuridade, seguida da doença diarreica, de anormalidades congênitas, asfixia no parto e sepse neonatal. Ou seja, o cuidado com a gestante através do apoio pré-natal, que ofereça à mãe o acesso ao conhecimento e empoderamento para um parto humanizado e respeitoso, tem maiores chances de diminuir os índices de mortalidade infantil. Com essa política funcionando em paralelo a uma educação perinatal e educação sexual e reprodutiva, conseguiremos diminuir os indicies de mortalidade e o número de bebês indesejados pelos pais, como relatam diversas pesquisas da Fiocruz.
Aqui, a maioria das mulheres que ?zeram aborto e acabaram presas são pretas e pobres, justamente as que têm menos condições de criar muitos ?lhos. As ricas pagam as clínicas clandestinas. Mais uma cruel faceta do preconceito racial e social no país?
Fica bastante claro nessa afirmação que a discriminação racial e social ainda faz parte do cotidiano dos brasileiros, infelizmente. Não somente quando falamos do aborto no país, mas em diversos outros temas, como a gravidez precoce, o acesso à educação e também à saúde.
A América Latina e Caribe são as regiões do mundo que mais perseguem as mulheres com prisão quando elas recorrem a abortos clandestinos. O Brasil teria uma chance de sair deste nefasto grupo?
Acredito que sim, se o aborto passar a ser tratado como uma questão de saúde pública, em primeiro lugar.