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Vassouras histórica: cidade é única no Rio com verba do Iphan, além da capital

Município recebe investimento privado para preservação de seu Centro tombado

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O cantor e compositor Cazuza faria 60 anos em 7 de junho deste ano. Sua mãe, Lucinha Araújo, resolveu iniciar as homenagens na cidade de Vassouras, no centro-sul do Estado do Rio de Janeiro. Por que tão longe da capital, onde o músico meio bossa-nova e rock’n’roll atravessava as noites com espírito mais que boêmio? Para Lucinha,  Vassouras faz parte da história do poeta, ou melhor, de algumas férias de um dos maiores letristas da geração 80. Na última sexta-feira, Lucinha estava lá, transformando uma bonita casa no Centro Cultural Cazuza. Contando assim, parece tudo harmonizar com uma canção do gênero do banquinho e um violão. Nada disso. Foi punk. A edificação — agora com ternos, bandanas, vídeos, artigos, poemas e uma estátua do artista em seus cômodos — estava literalmente caindo aos pedaços. “Eu nasci nessa casa, e quando vi o estado dela, me dei conta que algo tinha de ser feito”, conta Lucinha Araújo. 

A mãe de Lucinha era tão apaixonada pela casa que resolveu ter uma de suas três filhas no seu interior. O imóvel fica no entorno da Praça Barão de Campo Belo, um dos grandes ícones do centro histórico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional  (Iphan). O susto da Lucinha ao ver as ruínas de sua “maternidade” a levou a um encontro com o prefeito de Vassouras, Severino Dias, já que aquela estrutura arquitetônica pertence à prefeitura. No diálogo com o alcaide, ouviu que a atual administração pública acumula dívidas herdadas da anterior, e nada poderia fazer. Lucinha não suportou toda aquela inação. Propôs ela mesma investir na restauração. Enfim, empregou recursos próprios (R$ 2,5 milhões) em algo que não é dela. 

Vassouras tem preservado seus casarões do século 19 e, o mais difícil, a beleza do conjunto de edificações do centro histórico por diferentes motivos: a atuação do Iphan ali, que há 60 anos tombou o próprio centro histórico; iniciativas como as de Lucinha Araújo; e o fato de não ter sido um polo fabril, motivo pelo qual uma importante cidade vizinha, como Valença, também inserida no Vale do Café, está hoje bem mais adensada, o que pressiona seu valioso patrimônio arquitetônico.

Lucinha Araújo, é claro, estava feliz com a inauguração do Centro Cultural Cazuza na sexta-feira. Mas trocava o sorriso por uma expressão de receio quando falava sobre a perspectiva de futuro da casa. Construída em 1845, foi morada do Barão do Itambé com seu estilo eclético no qual se flagra o neogótico no segundo andar da fachada. “Minha esperança é de que a mantenham. Tomara que a restauração do centro cultural inspire outras iniciativas. E as casas de Vassouras, que são lindas, possam a ser  cuidadas como merecem’’, afirma Lucinha.

Como o centro histórico é tombado, qualquer reforma nas casas ali tem de passar pelo exigente crivo do Iphan, que financiou o projeto (R$ 139 mil). Com isso, Lucinha teve de fazer uma espécie de licitação particular com escritórios de restauração. “Teve empresa que chegou a cobrar R$ 5 milhões’’, lembra o empresário Fernando Vianna, amigo da família, que ajudou Lucinha a levar a empreitada à frente, numa obra que durou pouco menos de um ano. A presidente do Iphan, Kátia Bogea, ficou tão impressionada com o altruísmo de Lucinha que resolveu vir de Brasília para inauguração. “Ela teve uma grandeza enorme’’, diz a presidente, ressaltando que não só a recuperação da fachada como a do interior do imóvel seguiram à risca as determinações do Iphan.

Exemplo a ser seguido 

A presença da mais alta patente do Iphan em Vassouras pode ser associada ao fato de a cidade oferecer uma esperança de que seu patrimônio histórico poderá servir de exemplo a outras cidades. Mas há muito a ser feito. Em Vassouras, casarões bem-conservados no entorno da supramencionada Praça Barão do Campo Belo convivem com pelo menos seis com fachadas, ao mesmo tempo. belíssimas e maltratadas a esconder escombros de cômodos. 

Mas Vassouras vai resistindo. O empresário Ronaldo Cezar Coelho, por exemplo, comprou da Irmandade da Casa de Misericórdia, por R$ 3 milhões, o antigo Asilo Barão do Amparo, um prédio erguido entre de 1848 e 1853. A construção estava tão deteriorada que o Iphan também financiou o projeto (R$ 680 mil) e fez uma obra emergencial: um anteparo sobre o telhado, já bem comprometido. “Por enquanto, a edificação passa por obras emergenciais, e o empresário ainda não apresentou ao Iphan o projeto do novo uso do imóvel”, diz Luciana Pappacena, chefe do escritório do Iphan em Vassouras. Especula-se que será um centro cultural, no qual serão investidos R$ 18 milhões.

Entre as fazendas históricas da época áurea do café — o Vale do Café foi a região que mais produziu o grão no mundo na segunda metade do século 19 —,  há outra restauração importante. Trata-se da reforma da Fazenda Santa Eufrásia, em Vassouras.

Única fazenda na circunscrição do município tombada pelo Iphan, em 1970, foi visitada pelo arquiteto Lúcio Costa. No fim dos anos 1960, o criador dos traços e das asas de Brasília, então um dos mais influentes na decisão de tombamento do Iphan, ficou impressionado com a arquitetura colonial da casa, numa região em que os estilos eclético e neoclássico deram o tom no auge da produção cafeeira. A Santa Eufrásia foi uma grande produtora de café, mas a residência ali foi construída nos anos 1820, um pouco antes do boom econômico gerado pela extração da semente da cafeeiro. O custo da obra é de R$ 9 milhões, bancados pela empresa canadense NPS, responsável pela instalação de gasodutos ali. “Foi um termo de ajuste de conduta (TAC), porque dutos da Petrobras tiveram de ser instalados ali”, diz Luciana Pappacena, do Iphan. 

A Associação Paroquiana de Vassouras (ACEPAVA), uma edificação neoclássica que integra o centro histórico tombado, também está sendo restaurada. A obra, orçada em R$ 740 mil, feita e custeada pelo Iphan, estará pronta em agosto.    

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O SONHO

Crédito para restauração 

O Iphan, entre obras e elaborações de projetos, está investindo R$ 2,8 milhões em Vassouras. Embora seja um alento, a cidade tem pelo menos seis casas em péssimo estado no centro histórico. A em pior situação é a famosa Casa das Sete Janelas, em que o imóvel foi simplesmente abandonado pelo proprietário. O Iphan já multou o dono e está à espera de uma decisão judicial. A presidente do Iphan, Kátia Bogea, disse que este caso é algo à parte. Mas as outras casas deterioradas no Centro, para ela, sugerem uma reflexão. “Nosso sonho é conseguir que a Caixa Econômica Federal libere linhas de crédito para proprietários de casas tombadas”, explica Kátia. Para ela, há alguns casos em que a renda familiar de quem habita essas edificações e tem o registro geral de imóveis não tem como ser comprometida com uma reforma. Isso porque não se trata de uma reforma qualquer. As exigências de manutenção por parte do Iphan das características originais das residências inibem as reformas e, até mesmo, a venda, já que possíveis compradores se frustram por não poder fazer um retrofit, processo de modernização do imóvel relacionado, por exemplo, às partes elétrica e hidráulica. 

Seja como for, o patrimônio histórico de Vassouras tem atraído turistas. Isso é comprovado no Festival do Vale do Café, em que cidades da região recebem músicos eruditos e populares em fazendas ou centros históricos, como o de Vassouras.  Todo ano o evento usa algumas efemérides para formar sua programação musical. E, neste 2018, alguns homenageados já estão definidos. Cazuza é um deles, justamente pelo fato de que, em junho, o músico completaria 60 anos. Os 100 anos de nascimento Jacob do Bandolim também estarão na programação em forma de música e em solos do instrumento do chorão.  Produtor do festival, Nelson  Drucker diz que o violonista Baden Powell também será lembrado. “Ano passado, Baden completaria 80 anos, e pouco foi feito para se lembrar desse músico extraordinária. Então, vamos fazer uma brincadeira chamada Baden mais 1”, anunciou ele, afirmando que o festival vai circular por pelo menos 12 cidades. 

Com formação em turismo, a portuguesa Susana Magalhães escolheu Vassouras para morar. Além do patrimônio edilício, ela vê no lugar patrimônios imateriais. “Aqui o jongo é extremamente forte”, disse ela, ressaltando a cultura africana em função da brutal escravidão que marcou o Vale do Café.