Que o Rio de Janeiro vive um de seus piores infernos astrais não é novidade para ninguém. A crise, porém, também passou a atingir em cheio a vetusta Academia Brasileira de Letras (ABL), que só tem conseguido alugar a metade das 300 salas de sua sede, o Palácio Austregésilo de Athayde, vizinho ao Petit Trianon, no Centro da cidade, e sua principal fonte de renda. O orçamento mensal de R$ 2,4 milhões caiu a R$ 1,2 milhão. Com isso, os encontros e chás das terças-feiras foram cancelados em fevereiro, mês em que foram demitidos 12 dos 140 funcionários. Apesar da relativa penúria, as sessões das quintas-feiras precedidas pelo tradicional chá foram preservadas, sem abalos a seu requintado padrão de qualidade. É o que garante o acadêmico Arnaldo Niskier, 83 anos, 35 de casa, segundo decano (o primeiro é José Sarney), com assento na cadeira 18.
“É triste ver a academia em crise. O país está em crise, e o Rio é um dos estados que mais sofrem. Então, os problemas aqui também são maiores”, observa. De acordo com Niskier, a supressão das reuniões de terça-feira foi uma maneira de preservar “o essencial”, o chá, momento de reflexão que precede a sessão propriamente dita das quintas-feiras. “Nesses encontros discutimos problemas da academia e examinamos questões ligadas à língua e à cultura brasileiras”, esclarece Niskier. Neste aspecto, o acadêmico ressalta, nada mudou: o chá preto continua sendo da marca inglesa Twinings, servido em porcelana de Sèvres, com fartura de doces e salgados, sob a iluminação dos lustres de cristal.
Para uma casa que mantém 40 cadeiras, riscar um dia do calendário útil da instituição representa uma economia de R$ 40 mil — valor despendido pelo pagamento do jetom de R$ 1 mil a cada um que comparecer ao encontro. Além disso, os imortais recebem uma mesada de R$ 3 mil, aproximadamente. Outro que continua a frequentar a casa de Machado de Assis e não vê alterações no chá das quintas-feiras é o diplomata, poeta e historiador Alberto Costa e Silva, 87 anos, titular da cadeira nove. “Só muda a variedade das frutas, de acordo com as safras. A qualidade está igual, No entanto, não tenho preferências, sempre fui ruim para comer. Sou magérrimo”, desconversa. Seu colega Alberto Venâncio Filho, 84 anos, que ocupa a cadeira 25 desde 1991, faz coro: “Costumo comparecer às sessões e, quando posso, também vou ao chá, cujo padrão permanece o mesmo. Na minha opinião, entretanto, é até excessivo, porque deve sobrar muita coisa”, ressalva.
Os prédios
O Palácio Austregésilo de Athayde foi batizado com o nome do mais longevo presidente da ABL por ter sido o acadêmico que conseguiu, do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici, a doação do terreno de 20 mil metros quadrados que abrigava o Pavilhão da Inglaterra, da Exposição Internacional da Independência do Brasil, de 1922, vizinho ao Petit Trianon, que sediava a ABL e que, por sua vez, abrigava o Pavilhão da França na mesma exposição. A transação, contudo, teve uma contrapartida. Athayde foi obrigado a acatar a candidatura do general Lyra Tavares para a academia, por exigência de Médici.
Com projeto do arquiteto Maurício Roberto, o moderno prédio de 29 andares foi inaugurado em 1979. O contrato de cessão com a construtora Ecisa terminou em 1998, quando a ABL passou a assumir integralmente o aluguel das salas. O tamanho mínimo de uma sala é de 342m², entretanto, o aluguel pode ser feito para o número de salas conjugadas desejado. Como o preço do metro quadrado é R$ 65, o custo mínimo despendido por um interessado é de R$ 22.230.
Outros revezes financeiros enfrentados pela ABL envolvem o Solar da Baronesa Muriaé, em Campos, no Norte Fluminense, à beira do Rio Muriaé. O sobrado de arquitetura barroca, erguido em 1844 com 24 cômodos e tombado em 1974 pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan), foi cedido à Academia em 1993, que por sua vez o cedeu à Universidade Federal Fluminense Darcy Ribeiro. Virou um elefante branco. Só de impostos atrasados, a ABL já deve mais de R$ 6 milhões. Algo parecido acontece com os 23 prédios no Centro da cidade doados à instituição, em 1917, pelo livreiro Francisco Alves, outra fonte de dívidas com impostos atrasados. A generosa doação incluiu 160 mil livros.
História
A Academia Brasileira de Letras foi fundada no fim do século 19 por seu primeiro presidente, Machado de Assis, nos moldes da Academia Francesa congênere. Participaram do grupo, neste início, o abolicionista Joaquim Nabuco e o poeta Olavo Bilac, entre outras celebridades da época. Seu objetivo é cultivar a língua e a literatura nacionais. Fazem parte de seu acervo objetos pessoais de Machado de Assis; pinturas de Cândido Portinari; bustos de bronze — como de Machado sentado numa poltrona, na entrada do Palácio Trianon —; e biblioteca com coleção de Manoel Bandeira.
No início, a instituição não tinha sede própria e funcionava no antigo Ginásio Nacional, no salão nobre do Ministério do Interior e no Real Gabinete Português de Leitura. A primeira sede própria da ABL foi construída em 1922, por G. Manorat, para abrigar o Pavilhão da França na Exposição Internacional da Independência do Brasil. Foi inspirada no Petit Trianon do Palácio de Versailles, projeto do arquiteto Angel-Jacques Gabriel encomendado pelo rei Luís XV para instalar sua amante, Madame Pompadour. A obra foi de 1762 a 1768. Depois, foi presenteada a Maria Antonieta pelo rei Luís XVI. Ambos por sinal, morreram na guilhotina durante a Revolução Francesa de 1789. Em 1923, o governo francês doou a réplica do palacete neoclássico à ABL.
Com humor, a expressão “imortal” foi cunhada por Olavo Bilac (1865-1910): “Somos imortais porque não temos onde cair mortos”, o que, na prática, está longe de ser verdade. Outro patrimônio dos acadêmicos é a garantia à vaga vitalícia no Mausoléu da ABL, no Cemitério São João Batista, em Botafogo, na Zona Sul. Os eleitos são escolhidos por voto secreto, e as novas candidaturas só são postuladas uma semana depois da morte do falecido. Entre os candidatos à sucessão de Nelson Pereira dos Santos, falecido no dia 21 passado, despontam Cacá Diegues, Martinho da Vila e Pedro Correa do Lago.