ASSINE
search button

Detido no baile: Trabalhador que estava na festa dos milicianos permanece preso e incomunicável

Compartilhar

O que era para ser um sábado de trabalho e lazer para Heloisa Lorrane e Thiago Wiliam Xavier Barbosa, ambos de 27 anos, virou um verdadeiro pesadelo. Tudo porque o casal  saiu no último sábado 7 para receber o pagamento pela instalação de tendas em um show de pagode, no Sítio Três Irmãos, em Santa Cruz, na Zona Oeste da cidade. Acabaram vítimas da  megaoperação contra milicianos deflagrada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. Após 15 dias sem notícias do marido, Heloisa contou, em entrevista ao JB, o drama que viveu naquela madrugada, em que 159 pessoas foram presas acusadas de participar de uma celebração em homenagem ao líder do grupo miliciano Liga da Justiça, Wellington da Silva Braga, o Ecko. Sem ter como argumentar ou se defender, a jovem saiu correndo para se proteger dos tiros dos agentes que chegaram jogando spray de pimenta e agredindo homens, mulheres e deficientes físicos. Ela está há 15 dias sem notícias do marido, detido na operação policial. O cunhado, que também estava com eles, saiu poucos minutos antes da chegada da polícia.

Segundo a Defensoria Pública do Rio, 139 dos 159 presos não têm antecedentes criminais e a maior parte consegue confirmar a profissão. Segundo o defensor público-geral do Rio de Janeiro, André Castro. “foi um caso de flagrante injustiça”. “Isso jamais aconteceria numa casa de show da Zona Sul”, completou. O ministro extraordinário de Segurança Pública, Raul Jungmann, disse em entrevista que os presos devem explicar o que faziam numa festa de milicianos. Mas a defensoria alega que foram cometidas arbitrariedades legais nas prisões, o que demonstra a politização da ação da polícia. 

Segundo Castro, o episódio é ainda mais grave do que “os casos clássicos de prisões de jovens negros e pobres”, comuns nas comunidades mais carentes da cidade do Rio de Janeiro. Esse, em sua opinião, tem o agravante de ter sido cometido coletivamente e com pessoas que não teriam como participar de quadrilhas de milicianos.

JB - Por que vocês foram no Sítio? 

Heloisa Lerrone - “Fomos lá para receber o dinheiro do trabalho realizado, pois eu, meu esposo, meu cunhado e minha sogra trabalhamos montando aluguel de lona de circo. Eles colocaram as lonas como prevenção para se chovesse, não atrapalhasse o evento. Eu, meu marido e meu cunhado resolvemos entrar na festa e compramos o ingresso por R$10, porque eles só costumam pagar no final do evento. Como gostamos de pagode, resolvemos aproveitar um momento de lazer já que era sábado e teríamos que aguardar de qualquer maneira. Meu cunhado não foi preso porque saiu minutos antes da abordagem dos policiais. 

JB - O que aconteceu durante a ação dos agentes policiais? 

Heloisa - Começou um tiroteio do lado de fora às 4h30 da madrugada. Os policiais atiraram em nossa direção e do público que se escondia para não se ferir. Eles vieram do nada. Estava rolando o show, o cantor cantava, tudo normal. Tinha criança, deficiente, e os policiais com armas atirando, muita gente pulou o muro. Acho que  as pessoas que pularam o muro poderiam dever alguma coisa ou apenas tinham medo. Mas nós que somos de bem, trabalhadores, e estávamos lá curtindo o show, ficamos no evento. Eu mesma fui agredida e estou com um machucado bem feio na perna. Também jogaram spray de pimenta. Mesmo depois de revistar todo mundo, os homens deitados de barriga para baixo no chão, eles continuavam atirando. Passei mal, vomitei, fomos xingadas por tudo quanto é nome. Estava sem dinheiro e telefone, meu marido tinha sido  preso. Meu cunhado foi embora pouco antes. Peguei um telefone emprestado e avisei a minha sogra, que pediu para eu esperá-la. 

JB - Quem contratou vocês? 

Heloisa - Os organizadores da festa, que estava sendo divulgada inclusive nas redes sociais com cantores de grupos famosos.

JB - Foi a primeira vez que a empresa trabalhou no Sítio? 

Heloisa - Não, não foi a primeira vez. Nós já fizemos casamento, eventos de igrejas, aniversários e até eventos para empresas privadas no sítio. 

JB - Não suspeitaram se tratar de um evento envolvendo milicianos?  

Heloisa - Em nenhum momento nos preocupamos com isso. A preocupação era fazer um bom trabalho. Não pesquisamos as pessoas para as quais nós vamos prestar serviços, ou pedimos documentação, nenhuma loja faz isso. Existe um acordo apenas do serviço e do pagamento, se não é feita a confirmação ou pagamento, não realizamos o serviço.

JB - Vocês viram algo estranho na festa do Ecko? 

Heloisa - Sabíamos que ali haveria shows das bandas de pagode. As pessoas eram normais, não tinha nada demais, todos estavam curtindo o show e a noite, era sábado, dia de aproveitar após a semana de trabalho. 

JB - Qual é a situação do pedido de Habeas Corpus do Thiago? 

Heloisa - Ainda não demos entrada. Nós estamos tendo apoio da Defensoria Pública. Já foi iniciado o processo para a confecção da carteirinha para visitação no presídio. Faz quinze dias que não vejo meu esposo e não tenho informações. O que sabemos, por intermédio de um advogado de um amigo dele, é que ele está com herpes nos olhos e com febre. Pedimos cuidado com ele, pois é diabático.

JB - Vocês sabem de outras histórias? 

Heloisa - Sabemos que alguns dos presos moram em regiões dominadas por facções e as famílias estão sendo expulsas por serem taxadas por milicianos. Isso é preocupante, o que vai acontecer com essas famílias? Elas vão ser assistidas? Eu e minha sogra chegamos a ouvir de agentes policiais que moramos mal e não podemos frequentar alguns lugares, mas  moro onde posso morar. Se a policia e os governantes dessem segurança isso não aconteceria. Ouvir que você está no lugar errado, na hora errada, é bem desmotivante. As pessoas têm medo de represálias. 

JB - Que provas vocês estão reunindo? 

Heloisa - Meu marido tem empresa aberta no nome dele, nunca ele, eu ou meu cunhado tivemos envolvimento com milicianos, ou mesmo passagem pela policia. Isso é desolador.

JB - Como você encara a situação? 

Heloisa - Hoje tenho medo da polícia, não posso ver ninguém armado que já vem uma sensação de pavor. No protesto eles apareceram e eu entrei em pânico, não posso ver arma. Vai demorar muito para sair da minha cabeça aquela cena, de gente sendo atingida por tiro, de mortos, de tiros para o alto. Vou demorar para querer sair de casa e curtir uma noite ou trabalhar. Somos trabalhadores e estávamos lá para receber nosso dinheiro. Eu entendo o trabalho dos agentes, mas não precisa julgar todos por um. Tinha gente ali que estava trabalhando e se divertindo e eles chegaram simplesmente atirando. Cenas horríveis. Pior é levarem as pessoas e não darem nenhuma informação.