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Davison Coutinho: ‘Vivemos num abatedouro’

Com mestrado em Design pela PUC, líder é homônimo de jovem assassinado na Rocinha

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Filho de nordestinos, Davison Coutinho, de 28 anos, vive na Favela da Rocinha desde que nasceu. Formado em Design pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), coordena o Núcleo de Estudos e Ações sobre o Menor (NEAM), na mesma instituição, voltado para inclusão de jovens e adolescentes de favelas. Para Davison, líder entre os jovens, a favela de São Conrado vive seu pior momento, com mais de 50 mortes em seis meses: “Vivemos uma guerra de combate aos pobres”. Ele cobra ainda o fim das obras do PAC e projetos para capacitação de jovens, presas fáceis e serem cooptadas pelos traficantes de drogas.

Há quanto tempo você vive na Rocinha? 

Nasci na Rocinha. Meus avós vieram do Nordeste, com a minha mãe ainda pequena,  em busca de melhores condições de vida do que se tinha na Paraíba. É o que acontece com grande parte das famílias daqui.  Fiz graduação em Design e mestrado também em Design pela PUC. Meu trabalho final de conclusão da graduação virou um livro, intitulado “Um olhar sobre a produção cultural na Rocinha”. Existe uma riqueza e multiplicidade cultural da favela que é invisível para muita gente. 

Para você, qual o grande problema da favela da Rocinha atualmente? 

O problema da Rocinha hoje é o mesmo de décadas atrás: o abandono pelo poder público. Se você perguntar, qualquer morador vai responder a mesma coisa que eu. Temos uma favela que tem de cem a 120 mil moradores, segundo o Instituto Pereira Passos. Levando em consideração informações de lideranças comunitárias, a população é ainda maior: de 180 a 200 mil moradores. Apesar de tanta gente viver aqui, convivemos com uma ausência de saneamento básico e de infraestrutura, temos vários becos com apenas 60 centímetros de largura, o recolhimento de lixo é precário, temos várias valas abertas, que só servem  para proliferação doenças. O segundo grande problema da favela é a falta de oportunidade. Não se tem educação básica de qualidade nem oportunidades de ensino técnico e superior. Nesse cenário, a inclusão social se mostra muito difícil. Paralelamente, o tráfico, muito sedutor, atrai esse jovem estigmatizado pela miséria, com diversos problemas familiares. O tráfico não atrai esses jovens só pela questão do dinheiro. É mais que isso. É uma questão de estigmatização social, de poder, de autoestima, que vai muito além da questão financeira.  

E como você vê o futuro desses jovens da favela cooptados pelo tráfico?

 O dinheiro do tráfico não fica aqui. Pelo contrário. Fica com as pessoas que não sabem nem o que é favela. O tráfico de drogas gera bilhões. Esse dinheiro não está aqui na Rocinha. E aquele helicóptero com quase 500 quilos de cocaína? Ninguém foi preso. Cadê o dono do helicóptero? O mais importante é saber como as drogas chegam na favela. Deixam para combater o tráfico na ponta, só na parte pobre da história. Assim, aqui na favela, a gente fica do jeito que está. Perdendo morador assassinado todo dia. Costumo dizer que, aqui na Rocinha, vivemos num abatedouro. Estamos sempre esperando a nossa vez. 

Você já perdeu algum amigo no tráfico de drogas? 

Sim. Já tive colegas que estudavam comigo, entraram para o tráfico e morreram. 

Como tem sido a rotina de conviver com tantas mortes e tiroteios diários? 

A gente vê muita gente morrendo. O último foi o Davidson (Farias de Sousa), baleado no Largo da Vila Verde. De mesmo nome e idade que eu. Poderia ter sido eu. Eu o conhecia desde pequeno, conhecia a família dele. Ele não tinha envolvimento com o tráfico. Muita gente achou que tivesse sido eu, por conta de termos o mesmo nome e idade. A dor de um morador é a dor de todos. Não dá mais para continuarmos perdendo vidas assim. Isso sem falar nos abusos que acontecem durante as abordagens...

Você já sofreu abordagem agressiva da polícia?  

Eu não. Mas já ouvi vários relatos de outros moradores. Tem gente que diz ter levado tapa na cara quando saiu para comprar pão. E dizem que o morador tem que anotar o nome do policial que fez isso. Mas, dentro de um beco, com um monte de policiais, quem vai pegar nome? Temos uma guerra de pobre matando pobre: é a polícia contra a favela, o traficante contra a polícia. O que temos é uma guerra de combate aos pobres, porque o policial que mata uma pessoa aqui na favela não vai dormir no Leblon. Vai dormir na periferia. 

Você já  tinha presenciado uma onda de violência com tantas mortes na Rocinha? 

Não. Que eu me lembre, só tivemos algo parecido em 2004, com uma invasão provocada por guerra de facções. Já são mais de 50 mortes em apenas seis meses. Paralelamente, as obras do PAC 1 (Programa de Aceleração do Crescimento, lançado em 2007), prometidas para a Rocinha não foram concluídas. Faltou a revitalização do Largo do Boiadeiro e a construção do plano inclinado, por exemplo. Foi um programa positivo que proporcionou a construção de uma biblioteca, um complexo esportivo, uma UPA(Unidade de Pronto Atendimento), construção de apartamentos, abertura de uma rua de quatro metros onde antes se tinha um beco de apenas 80 cm, com grande foco de tuberculose. O PAC 2 não foi à frente. Ia contemplar a Rocinha, com investimento de R$ 1,6 bilhão, mas acabou engavetado. Com ele, ganharíamos novas moradias. Mas para a intervenção, o governo federal vai liberar R$ 1,2 bilhão, né? Do que adianta o Exército? Serve para promover uma sensação de segurança mentirosa. Já estiveram aqui na Rocinha e não serviram para absolutamente nada.

Para você, qual seria o principal desafio dos moradores da Rocinha hoje em dia? 

O nosso principal desafio é viver! Conseguir ir na padaria comprar pão de manhã sem ser atingido, conseguir carregar o filho no colo na varanda sem levar um tiro. Além de todos os problemas de abandono do poder público que já falei, o nosso principal desafio é lutar pela nossa vida, todos os dias. Temos uma relação comunitária muito forte, muito importante e de muita união. O tiro come, o sangue escorre, mas o povo ergue a cabeça e luta pela sua sobrevivência todos os dias.