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Descaso com autistas

Batalha judicial para o Estado cumprir sentença de tratamento adequado a autista na rede pública se arrasta desde 2011

Beto Herrera -
Carine Gabriel e o filho autista, de 8 anos, buscaram ajuda da Defensoria Pública para atendimento especializado. Ela diz que tratamento na rede pública depende de peregrinação
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A criação de centros especializados voltados especificamente ao tratamento das pessoas com autismo é a base de uma batalha judicial entre a Defensoria Pública do Rio e o governo do estado há quase oito anos. Desde 2011, uma sentença proferida em ação coletiva, ajuizada em 2005, determinou o tratamento adequado ao autismo, mas o estado vem recorrendo e até hoje não cumpriu a decisão. Em dezembro passado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) - um órgão da Organização dos Estados Americanos - aceitou o caso denunciado pela Defensoria Pública. De acordo com Pedro González, coordenador do Núcleo de Atendimento à Pessoa com Deficiência (NUPED), a denúncia vai tramitar na CIDH, que após analisá-la pedirá informações ao governo brasileiro sobre o fato. Em seguida, o órgão vai decidir se instaura um processo contra o Brasil. Ao final do processo, a comissão pode fazer recomendações ao estado brasileiro e decidir pelo cumprimento da sentença. Caso o Brasil não acate as medidas, o órgão pode ainda submeter o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

"A postura do Estado é lamentável. Denunciamos o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos justamente por essa demora do governo estadual em cumprir a sentença. A denúncia cumpriu os primeiros requisitos e será analisada. A comissão pode intermediar a busca por uma solução pacífica, mas se não houver, o caso vai para Corte Interamericana de Direitos Humanos que tem caráter de poder judiciário internacional", explicou González. De acordo com o defensor, até chegar à Corte Internacional, o caso tem um longo caminho a percorrer, mas ele acredita que "essa é uma forma de constrangimento internacional para chamar atenção do problema."

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Carine Gabriel e o filho autista, de 8 anos, buscaram ajuda da Defensoria Pública para atendimento especializado. Ela diz que tratamento na rede pública depende de peregrinação (Foto: Beto Herrera)

Mãe de um menino de oito anos com Transtorno do Espectro Autista (TEA), Carine Gabriel de Melo, de 33 anos, moradora de Brás de Pina, recebeu o diagnóstico do filho quando ele tinha três anos e meio. A criança passou por alguns tratamentos antes de ter assistência num dos Centros de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) mantidos pela Secretaria Municipal de Saúde. Familiares de crianças autistas dizem que as unidades de CAPSi, que atendem a vários problemas de saúde mental, não oferecem o atendimento ao autista de forma especializada. Eles denunciam que há falta de profissionais para o tamanho da demanda.

"A busca por tratamento especializado é uma peregrinação na rede pública e quando a gente encontra algo nunca é o tratamento integral e multidisciplinar completo e necessário ao desenvolvimento da pessoa com autismo. Eu mesmo faço algumas atividades com meu filho em casa e hoje ele fala e, além disso, apresenta uma evolução melhor. Não adianta procurar a clínica da família porque o encaminhamento é sempre para os CAPSI e, assim como nas ONGs, ele já não é visto com tanta prioridade, e o motivo é porque consegue falar ", lamenta Carine que buscou a assistência da Defensoria Pública do Rio.

De acordo com o coordenador do NUPED, Pedro González, a garantia da saúde é dever inquestionável do poder público e isso inclui o fornecimento do tratamento específico para autismo.

"O Transtorno do Espectro Autista exige múltiplos tratamentos e o fornecimento desse acompanhamento é dever do Estado e do Município. Infelizmente, a rede pública de Saúde e de Assistência Social não vêm observando isso junto à população e parece que só atenta para as questões referentes à saúde mental ", avaliou González.

Ainda de acordo com o defensor, o tratamento do autismo é muito caro nas clínicas particulares e, por isso, as famílias dependem do serviço público, da ajuda de terceiros ou de instituição filantrópica onde, muitas vezes, não há vagas para todos. A Organização Mundial da Saúde calcula que o autismo afeta uma em cada 160 crianças no mundo. A condição, geralmente, tem início na infância e persiste durante a adolescência e a vida adulta.

De acordo com a antropóloga Clarice Rios, pesquisadora do Instituto de Medicina Social da Uerj, há formas diferentes de ver a questão do atendimento público ao autismo no Rio. Segundo ela, para os pais, a demanda por tratamento especializado significa que seus filhos devem ser tratados em lugares exclusivamente projetados para crianças autistas. Ainda conforme a pesquisadora, os pais alegam que o autismo é uma condição complexa que requer a intervenção de vários tipos de profissionais (como terapeutas comportamentais, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais). Em vez disso, atualmente no Rio, os autistas têm que compartilhar os CAPSi com crianças com diversos tipos de problemas,como dependência de álcool e drogas,transtornos mentais, violência doméstica e vulnerabilidade social: "Para muitos pais, se os seus filhos autistas forem agrupados com crianças com problemas e necessidades muito diferentes, e tratados com abordagens terapêuticas não específicas, eles não aprenderão as habilidades necessárias para superar seus impedimentos".

A falta de acompanhamento especializado para autismo no serviço público e a redução do atendimento nas ONGs também por razões financeiras levou ao ajuizamento de ações individuais pelo NUPED. Um dos objetivos dessas ações é o tratamento especializado integral na rede pública. "O tratamento do autismo é uma questão relacionada aos direitos humanos e uma responsabilidade do Estado brasileiro em geral, e não importa para o cidadão se a atribuição é federal, estadual ou municipal", ressaltou González.

A Secretaria estadual de Saúde (SES) informa que é um agente fomentador das políticas de atendimento aos autistas, cabendo aos municípios o atendimento nos CAPSI e nos Centros de Atenção Psicossocial. Informa ainda que faz pareceres técnicos, habilita unidades, qualifica recursos humanos e busca verbas junto ao Ministério da Saúde para funcionamento das unidades. Com relação à ação coletiva, a SES esclarece que a decisão estabelece que o estado promova a qualificação de profissionais para atendimento aos autistas: "Ação, que está em curso com tratativas com o Núcleo dos Direitos Humanos, da Defensoria Pública, para a realização do treinamento". O defensor González explica, porém, que há uma possibilidade de um acordo da DPRJ com o Estado em fase de negociação, mas que apenas o treinamento dos profissionais não resolveria o problema". A Secretaria Municipal de Saúde informou que rede de atenção do município segue a linha de cuidado nacional preconizada pelo Ministério da Saúde para a assistência integral e inclusiva do autista. Nos CAPSi há 908 crianças com autismo e suas famílias em acompanhamento.