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Do ato de pichar ao grafite

Smael conquista fama no Brasil e no exterior com seu estilo abstrato, pintando o sete nos muros da cidade

Fotos de Marcos Tristão -
Acima, o painel "Te dei a flor, você não ligou", na Rua Batista da Costa, na Lagoa: uma tela de Smael (ao lado) chega a custar R$ 40 mil atualmente, mas o sucesso reconhecido em diversas exposições na Europa não subiu à cabeça do artista, que mantém projetos sociais em que ensina sua arte
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Quando o pai, cearense construtor civil radicado em Olaria, na Zona da Leopoldina, e a mãe, do lar, perceberam que o filho adolescente Ismael de Lima começara a se dedicar ao grafite, aos 17 anos, temeram por sua segurança. Afinal, no fim dos anos 1990 a técnica de pintar os muros da cidade ainda era considerada marginal no Rio de Janeiro. O próprio Ismael chegou a ser detido e a ter suas tintas apreendidas. Em 2019, porém, ele é um bem sucedido e respeitável artista, que fatura até R$ 40 mil por uma única tela e recebe sucessivos convites para transformar os muros da cidade em locais atraentes e aprazíveis.

Com jeitão de garoto aos 39, o carioca Ismael, cujo nome artístico é Smael grife que atrai aplausos por onde passa, inclusive em países europeus, como França, Bélgica, Holanda e Suíça , ele mantém a Galeria Passoca, inaugurada em 2011, na Gávea, na Zona Sul, onde são montadas de cinco a seis exposições por ano por uma equipe que transita da arte cinética, escultura e pintura ao vídeo arte, passando pelo grafite.

Macaque in the trees
Acima, o painel "Te dei a flor, você não ligou", na Rua Batista da Costa, na Lagoa: uma tela de Smael (ao lado) chega a custar R$ 40 mil atualmente, mas o sucesso reconhecido em diversas exposições na Europa não subiu à cabeça do artista, que mantém projetos sociais em que ensina sua arte (Foto: Fotos de Marcos Tristão)

Sua maior fonte de renda, porém, é seu trabalho solo. O mais recente está na Rua Batista da Costa, quase na Avenida Borges de Medeiros, na Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, cujo título é tão instigante quanto a imagem geométrica de formas arredondadas sobre parede negra: "Te dei a flor, você não ligou".

E se tamanho fosse documento, o grafite da série "Fundo do Mar", que consumiu 120 latas de spray e outras duas latas de 18 litros de tinta acrílica, poderia ser considerado o mais importante, com 100 m de extensão no muro antes detonado à beira mar, que trouxe status ao quiosque Qui Qui autor da proposta levada à prefeitura , instalado no alto do calçadão, em frente ao número 822 da Avenida Prefeito Mendes de Morais, em São Conrado, na Zona Sul. "É uma arte que está fluindo no Rio", comemora o cativante Smael, que mistura simpatia e humildade, associadas à sensação de quem sabe muito bem a importância do que faz.

Ele estudou até o segundo grau técnico de informática. Chegou a procurar a Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), porém, foi desaconselhado pela professora responsável, pelo fato de, àquela altura, já ter estilo definido e inserido no meio artístico. Fez cursos e frequenta, contudo, o Parque Lage.

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11/02/2019 Rio de Janeiro (RJ) Grafite2 do Esmael em São Conrado e no CAP da Lagoa. Foto Marcos Tristão (Foto: Marcos Tristão)

Trajetória

Smael era assíduo nas pistas de skate no Arpoador, na Lauro Müller e no Aterro do Flamengo, onde começou a prestar atenção aos grafites estampados nos muros. Aos 14 anos, se iniciou nas pichações. Três anos depois, se entediou da prática e começou a se dedicar à técnica. Nessa mesma época, coincidência ou não, surgiram em Olaria, de um dia para o outro, uns 20 jovens também interessados em grafite. Na sequência, conheceu Marcelo Eco, Fábio Ema e Akuma, a turma de São Gonçalo, na Região Metropolitana, as primeiras estrelas da técnica. "Começamos a nos reunir no Bar Sinuca hoje uma igreja , na Lapa, no Centro, nas festas de Hip Hop. Foi o berço do grafite na cidade", lembra.

Dali, surgiram vários crews (grupos, em inglês). E se naquela época havia cerca de 20 pessoas envolvidas com grafite, hoje eles somam mais de 200. Smael começou reproduzindo letras em japonês estilizadas. "Queria fazer um estilo diferente, e daí surgiu a abstração", conta. Ele participou da Nação Crew, a maior delas, e hoje integra a Santa Crew. Embora tenha se mudado para a Gávea, continua a orbitar em Santa Teresa, na Região Central, que deu nome à crew, "onde existem muitos muros". Seus desenhos se destacam em meio ao grupo, com o abstrato de formas arredondadas e o colorido singular que o caracterizam. Deixou uma marca no bairro, o painel de bicicletas que lembram telas de Joan Miró (1893-1983), o artista surrealista catalão. Foi a série que gerou o convite para expor em Paris, em 2011, onde todos os seus trabalhos foram arrematados.

O fato é que o grafite cresceu. Não apenas deixou de ser marginal, como também provou que é arte, bem mais valorizada no exterior do que no Brasil. Só não atrai mais adeptos porque "a tinta está muito cara, R$ 28 a lata, inviável para os mais jovens". Para Smael, seu pulo do gato foi o convite recebido para expor, em 2003, na Galeria Haus Arte Contemporânea, no Cassino Atlântico, em Copacabana, na Zona Sul. "Até então, nunca tinha pintado uma tela. Pintei, para mostrar ao galerista, fui contratado e logo recebi uma encomenda para pintar dez telas", recorda.

A generosidade é outro traço do artista. Em seu ateliê, em Búzios, na Região dos Lagos, ele vai dar início a um projeto social, nas aulas de grafite para a comunidade da Praia Rasa. Ano passado fez o mesmo em escolas públicas da cidade, como na Albert Sabin, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, para crianças especiais.

Descontraído na bermuda, camisa listada de cores vivas e boné preto com a Inscrição 'Deus' que nada tem a ver com o criador, mas com a grife de Bali, na Indonésia, Smael entra num confortável carrão preto utilitário quando termina a entrevista, atestado de seu poder aquisitivo, que não se reflete em seu estilo low profile de ser.

Algo parecido com o que acontecia com os papas do grafite, cujo valor das obras foi turbinado por Andy Warhol (1928-1987) e pelo genial Jean-Michel Basquiat (1960-1988). Absorvida pela cultura pop, a técnica da pichação surgiu na década de 1970, nas gangues do Brooklyn, em Nova York, usando personagens de Walt Disney, como o Pato Donald. O preferido de Smael era o Zé Carioca. A pichação evoluiu para o grafite na reprodução de letras. Depois, essas gangues passaram a homenagear seus mortos.

Marcos Tristão - 11/02/2019 Rio de Janeiro (RJ) Grafite2 do Esmael em São Conrado e no CAP da Lagoa. Foto Marcos Tristão
Marcos Tristão - 11/02/2019 Rio de Janeiro (RJ) Grafite do Esmael em São Conrado e no CAP da Lagoa. Foto Marcos Tristão