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Gênese da corrupção no Brasil

Doação de palácio a D. João por traficante de escravos será abordada na série 'Brasil Imperial'

Catraca Livre -
O Museu Nacional, antigo Palácio da Quinta da Boa Vista, fonte da corrupção
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Não fosse o ocorrido no século XIX, Elias António Lopes (1756-1815) poderia ser alçado ao nada nobre título de pai da corrupção brasileira. Nascido na cidade do Porto, em Portugal, o comerciante que se tornou um dos maiores traficantes de escravos das Américas e constava também da relação de homens mais ricos do país, doou a D. João – a essas alturas ainda príncipe regente - a melhor casa-quinta do século XVIII, situada em uma elevação, como um oásis, em região alagadiça. Agradecido pelo mimo, o príncipe instalou ali o Palácio da Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, onde ele e seus descendentes viveram até a Proclamação da República.

Em troca, o já próspero Lopes – cujo nome original era Elie Antun Lubbus - recebeu o título de Comendador da Ordem de Cristo, tão importante que, conforme Rodrigo de Aguiar Amaral, doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “brinca-se que o próprio Cristo não teria alcançado, pois era judeu e carpinteiro. Tal honraria costumava notabilizar cristãos de várias gerações que não praticassem atividades aviltantes para a época, como o trabalho manual. Lopes ganhou também o título de Fidalgo da Casa Real, Administrador da Quinta (ou seja, Fazenda) da Boa Vista, e a propriedade do ofício de Tabelião da Vila de Parati, entre outros”, contabiliza Amaral.

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O Museu Nacional, antigo Palácio da Quinta da Boa Vista, fonte da corrupção (Foto: Catraca Livre)

A retribuição da gentileza ficou registrada na seguinte carta de D. João: “Atendendo ao notório desinteresse, e demonstração de fiel vassalagem, que vem de tributar à Minha Real Pessoa Elias António Lopes, Negociante da Praça desta Capital, no oferecimento que Me fez de um prédio situado em São Cristovão de distinto e reconhecido valor em beneficio da Minha Real Coroa, E desejando fazer-lhe honra e Mercê como ele merece por esta acção voluntária de repartir com o Estado os lucros adquiridos pelo seu comércio: Hei por bem fazer-lhe Mercê de uma Comenda da Ordem de Cristo das de África, que vagar podendo usar logo da Insígnia de Comendador, como também da Propriedade do Ofício de Tabelião Escrivão da Comarca e Almotaceira da Villa de Parati, logo que finde a arrematação, e de Administrador do referido Prédio.”

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O ator André Rayol, na pele do traficante de escravos corruptor (Foto: Divulgação)

O que faltaria, então, para atribuir a alcunha a Elias António Lopes? É Rodrigo Amaral quem esclarece: “O conceito moderno de corrupção não cabe ao passado colonial/imperial brasileiro. Nossos melhores diplomas legais contra a corrupção são posteriores à constituição de 1988, como as leis da Transparência, da Ficha Limpa ede Acesso à Informação. Por outro lado, podemos chamar de um‘modus operandi sui generis’, denominado pelos antropólogos de ‘economia moral do dom’. Nesta lógica, era normal pessoas poderosas trocarem presentes, casamentos, etc, para efetivar trocas econômicas e políticas com a formação de redes de amparo e ajuda mútua. Era assim que operavam os ricos, confundindo o público com o privado.”

Essa e outras histórias serão contadas na série “Brasil Imperial”, concluída esta semana pela Fundação Cesgranrio, que convidou o ator André Rayol para desempenhar o papel do ilustre traficante. O fato é que Lopes conviveu com D. João por oito anos. Morreu, porém, antes que o príncipe virasse rei. Nem por isso, durante este convívio, deixou de se dedicar à atividade que o enriqueceu, já que o príncipe não parecia se incomodar muito com as práticas comerciais de seu benfeitor. Daí em diante, contudo, Lopes passou a se voltar mais à vida palaciana e às atividades mercantis permitidas pela corte, como moedeiro e recolhedor de impostos.

Segundo Amaral, Elias Antônio Lopes constava da famosa lista de 1799 do Vice Rei, Conde de Resende, que reunia os 36 negociantes mais ricos do Rio de Janeiro. “Isso demonstra que Lopes já era rico e respeitado antes da vinda da família real”, sublinha. Logo após o desembarque da comitiva lusitana no Rio, em março de 1808, D. João passou diversas listas de “subscrições voluntárias” para remediar as necessidades financeiras da Corte. Foram vários os casos de pessoas que simplesmente se viram obrigadas a abandonar suas casas para cedê-las aos nobres portugueses. Talvez, espertamente, Lopes tenha se antecipado. à incômoda obrigação.

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D. João, que na época ainda era príncipe regente, o corrompido (Foto: Divulgação)

O fato é que o Rio de Janeiro foi elevado de um dia para o outro à condição de capital do império português, embora à época já fosse um dos principais portos de uma rede comercial que conectava várias partes do mundo. De acorco com Amaral, a mercadoria que sustentava essa rede internacional eram os escravos. “Com a chegada da Corte, o negócio só fez crescer. Durante os 13 anos da permanência de D. João no Brasil (1808-1821), cerca de 250 mil escravos desembarcaram no Rio de Janeiro. Só os Estados Unidos importaram da África cerca de 400 mil escravos. Não seria exagero afirmar que as principais riquezas movimentadas na sociedade brasileira dependiam das relações escravistas.”

E assim como a cidade padece do crescimento da influência dos traficantes de drogas e milicianos, os maiores traficantes de escravos das Américas escolheram o Rio de Janeiro para se estabelecer. Esta prosperidade foi impulsionada pela descoberta de ouro em Minas Gerais na década de 1690, que gerou uma grande demanda de recursos e mercadorias, de escravos às ferramentas. “A partir da segunda metade do século XVIII, estes negociantes, sediados perto do porto do Rio dominaram o crédito, as instituições seguradoras, o tráfico de escravos, a importação e a exportação dos produtos”, completa Amaral.

Lopes chegou ao Brasil por volta de 1771. No Porto, onde nasceu, foi iniciado ainda garoto no trato mercantil, carreira que começava como caixeiro, cobrador de dívidas ou vendedor de mercadorias ligado por laços familiares a algum tio ou mesmo ao pai negociante. A partir dos 30 anos já era reconhecido no Rio por sua habilidade nos negócios. Também assumiu cargos em irmandades, como na ordem das Carmelitas. Não se casou e nem teve filhos. Morreu, sem deixar testamento, em 7 de outubro de 1815, aos 59 anos, de causa desconhecida.

Não seria impossível relacionar a maldição do incêndio que se abateu sobre o Museu Nacional – sediado no palácio imperial -, em 2 de setembro de 2018, às suas origens escusas.

Divulgação - O ator André Rayol, na pele do traficante de escravos corruptor
Divulgação - D. João, que na época ainda era príncipe regente, o corrompido