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Rio dos portões e gradis art déco

Estilo francês foi majoritariamente executado por artistas plásticos e designers italianos

Marcos Tristão -
Portão art nouveau desenhado pelo artista italiano Gino Coppedè, no Castelinho do Flamengo
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De 1900 - quando a cidade já começava a ser submetida a faxinas que reduziram sua insalubridade -, a 20 de abril de 1960, véspera da transferência da capital federal para Brasília, o Rio de Janeiro foi uma espécie de capital do mundo. Aqui, era possível assistir o melhor balé russo no esplendoroso Teatro Municipal ou até caçar uma onça na Floresta da Tijuca. São traços que ajudam a explicar a existência de portões e gradis, verdadeiros tesouros arquitetônicos que, com a preciosa ajuda do ex-prefeito Luiz Paulo Conde (1934-2015), escaparam da demolição.

O mais curioso é que a maior parte deste legado, predominante no Centro, Flamengo e Copacabana, mais presente no estilo art déco, de origem francesa, tenha saído das mãos de artistas italianos. É o especialista Marcio Roiter, presidente do Instituto Art Déco Brasil, quem joga luz sobre esta que não é uma mera coincidência: “Após a abolição da escravatura houve uma poderosa migração italiana, país que passava por uma forte crise econômica. Muitos deles chegaram aqui mais capacitados que os escravos para as artes decorativas. Participaram ainda muitos artistas do pavilhão italiano na Exposição do Centenário da Independência, em 1922 no Rio”, justifica.

Uma dessas joias fica na Praia do Flamengo 158, onde hoje funciona o Centro Cultural Municipal Oduvaldo Vianna Filho, o Castelinho do Flamengo. Independente do prédio em si, de estilo eclético, o inovador arquiteto italiano Gino Coppedè (1866-1927) inaugurou em 1916 o palacete do comendador Joaquin Silva Cardoso – um dos fundadores do Sindicato da Indústria da Construção Civil – com um magnífico portão de ferro art nouveau reproduzindo uma borboleta, estilo anterior ao art déco (1890-1914). Autor de palácios na Europa e EUA, Coppedè ainda foi capaz de antecipar características art déco, estilo que só começou a chegar no Rio a partir de 1930 (na França, onde nasceu, existiu de 1918 a 1939), no gradil que cerca a residência, conforme observa Gustavo Menezes, 65, da equipe de produção cultural do Castelinho.

Já a miscelânea de estilos do palacete de quatro pavimentos na Rua do Russel 734, com uma pegada do genial arquiteto catalão Antoni Gaudi (1852-1926), construído um ano antes do Castelinho, também foi projeto de outro italiano, AntonioVirzi (1882-1954), para a residência de Gervásio Renault de Silveira - fabricante do Elixir de Nogueira. O que mais subverte os compêndios da arquitetura, neste caso, é a distribuição assimétrica dos cômodos da residência, que passou às mãos de Marie-AmélieBourdon, e foi tombada em 1980 pelo Instituto do Patrimônio Históricoe Artístico Nacional (Iphan).

E como o casarão, que já foi restaurante, está fechado e decadente, é seu portão, trabalho de ferro de mais um italiano, Pagani, do ateliê Castier, que impressiona, com sua mistura de elementos art déco e duas serpentes que servem de puxadores, mistura que Roiter disseca em seu livro ainda não publicado “Pindorama Modernista, a influência indígena no Art Déco e Modernismo brasileiros”. Quando o consagrado estilo aportou por aqui, predominou nas construções erguidas na Esplanada do Castelo depois de 1930, representando o moderno. “Só depois dos anos 1960 se passou a usar o termo art déco, como referência ao moderno”, observa.

Naquela época, além dos prédios comerciais, as incorporadoras recheavam de luxo os residenciais, para convencer os futuros moradores de que as novas moradias equivaleriam em status aos palacetes, projetos cada vez mais restritos às minorias. Um exemplo é a elegante portaria do prédio de número 166 da rua Ronald de Carvalho, em Copacabana, erguido em 1932 com uma porta art déco cercada por vitrais, de autoria de Gastão Formenti (1894-1974), pintor, vitralista e cantor de ópera carioca, filho de italianos. “O prédio foi erguido para ser um hotel, contudo, com a morte de um dos sócios, virou residencial”, explica o porteiro Adelson Barbosa, há 18 anos trabalhando no chique endereço.

Outros exemplos são o prédio 20 da Rua Almirante Tamandaré, no Flamengo, com seu monumental portão verde art déco emoldurado por mármore rosado, ou ainda os gradis da casa número 319 da rua Paissandu. De todas essas preciosidades, a que que mais incorpora a tese defendida no próximo livro de Roiter é a portaria do edifício Itahy, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana 252, não por acaso, uma das primeiras imagens a ilustrar o livro a ser lançado pelo autor.

A porta tem em sua parte superior uma sereia sobre uma trama de algas, verdadeira releitura tupiniquim do estilo francês.“O projeto, do artista Pedro Correa de Araújo, nascido na França em 1874 e falecido no Rio em 1961, era um caldeirão de brasilidade com traços art déco. A imponente porta traz no alto uma sereia meio índia, meio mulata, e por trás dos vidros há uma belíssima trama de algas”, descreve. A luta, agora, é evitar que o belo portal seja cercado por grades – lamentável característica dos tempos que vivemos -, para evitar a ocupação das escadas, por falta de alternativa, pela população de rua.