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O negócio das milícias

Um mesmo imóvel da Zona Oeste pode ser vendido até cinco vezes por milicianos, após a expulsão dos donos

Beto Herrera -
Em dezembro passado, a Defesa Civil interditou sete prédios em Rio das Pedras, área dominada pela milícia, para impedir a continuidade de obras irregulares
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Um mesmo imóvel irregular na Zona Oeste da cidade é vendido até cinco vezes ao ano por milicianos da região. Segundo o promotor do Ministério Público, Luiz Antônio Ayres, que investiga as milícias na localidade, a venda é feita para compradores distintos. Os moradores já instalados são expulsos, o que turbina o valor da atividade. De acordo com Ayres, há indicações de construções irregulares cujas metragens variam entre 15 e 35 m2. A milícia cobra valores de R$ 5.000 mil a R$ 40 mil, dependendo da localização e metragem.

“O mais importante é não haver nenhuma estabilidade jurídica na aquisição desses imóveis irregulares, quando muito, um simples documento informa a “aquisição” de uma unidade. Quando os milicianos identificam uma pessoa que pode pagar mais pelo imóvel, eles expulsam os antigos moradores. Chegam a ganhar R$ 100 mil vendendo o mesmo imóvel cinco vezes por R$ 20 mil”, descreveu o promotor, lembrando que as vítimas temem formalizar as denúncias por medo de represálias.

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Em dezembro passado, a Defesa Civil interditou sete prédios em Rio das Pedras, área dominada pela milícia, para impedir a continuidade de obras irregulares (Foto: Beto Herrera)

De acordo com Ayres, essa prática de milicianos no ramo das construções irregulares na Zona Oeste ocorre em Campo Grande, Santa Cruz e Jacarepaguá. Começou com as habitações do Minha Casa, Minha Vida - programa do governo federal-, que promovia a aquisição da casa ou apartamento próprios para famílias com renda. Posteriormente, os milicianos passaram a fazer a segurança de algumas construtoras e a se infiltrarem no ramo imobiliário. Na região, a milícia é controlada pelo traficante Eko (irmão do traficante Carlinhos Três Pontes, morto em 2017) e Danilo, recrutado por milicianos.

“Os milicianos passaram a vender os imóveis das construtoras à revelia. Depois, começaram a invadir terrenos públicos e particulares e iniciaram seus próprios empreendimentos. Na Zona Oeste, o tráfico de drogas está perdendo espaço para a milícia. Em novembro passado, o milicianos tomaram a Favela de Antares sem tiros. Os traficantes que não concordaram foram para o Frade, em Angra dos Reis. Os que ficaram se aliaram aos milicianos”, contou.

Código de Obras

Essa semana, o prefeito Marcelo Crivella sancionou o novo Código de Obras, que cria regras de construção mais liberais na cidade. Pela nova lei, o tamanho mínimo de um apartamento construído no Rio é de 25 m2, com exceção da Barra da Tijuca, do Recreio dos Bandeirantes, da Ilha do Governador e das Vargens (Grande e Pequena). Na legislação que acaba de ser substituída, a área mínima útil em edifícios variava, de acordo com a região da cidade, de 28 m2 (Centro e Zona Norte) até 60 m2 (Zona Sul). O novo código pretende ser mais moderno e simples para quem desejar realizar obras e construir novos empreendimentos na cidade.

“Como a milícia realiza construções irregulares, que não obedecem a gabaritos e metragens, é possível que a alteração normativa tenha pouco impacto num primeiro momento neste ramo ilegal de atividade. A médio prazo, a milícia pode encontrar formas de usar a legislação a seu favor, “esquentando” construções irregulares coagindo imobiliárias e construtoras, mas ainda seria precoce afirmar que tal fato ocorrerá”, avaliou o promotor.

Ayres lembra, porém, que o município detém o poder de polícia administrativa para fiscalizar qualquer construção, a qualquer momento, independe de alterações no Código de Obras e Edificações: “A falta de recursos financeiros para uma fiscalização efetiva é um enorme problema. Some-se a esta dificuldade focos de corrupção que nas esferas do poder público, e o medo de fiscais municipais de vistoriar e autuar edificações ilegais da milícia.”

Força-tarefa

Para o promotor, uma maneira de impedir a atuação das milícias seria a criação de uma força-tarefa alinhando forças de segurança e fiscais municipais para embargar e destruir ainda no início construções irregulares. Ele lembra que, uma vez concluídas, essas obras ficam mais difíceis de ser desfeitas, restando o ingresso de ações judiciais sem rápido desfecho.

O antropólogo Robson Rodrigues, ex-chefe do Estado-Maior da PM e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, também é favorável à criação da força-tarefa para coibir as construções irregulares dos milicianos: “A milícia aprende rápido e age com violência nas lacunas deixadas pelo Estado. A Segurança não é estática. E a criação dessa força-tarefa é uma boa ideia. Diferente do tráfico de drogas, os milicianos transitam com facilidade no formal e informal, no legal e ilegal. Há ramificações até na política, por isso, é importante definir ações como essa força-tarefa sugerida pelo promotor”.

Para o sociólogo José Cláudio Souza Alves, pesquisador da atuação da milícia no estado do Rio, a expulsão de moradores do mesmo imóvel depõe contra eles próprios e pode significar um prejuízo político nessa área. Ele lembra que, na Baixada Fluminense, a milícia ocupa áreas do poder público federal em dois grandes bairros de Duque de Caxias: São Bento e Pilar.

“São terras da União não controladas pelos órgãos fiscalizadores, o Incra e o Serviço de Patrimônio da União. Os dois órgãos não fazem mais esse tipo de fiscalização. As milícias entram nessas regiões, controlam e passam a vender lotes de 10 por 30 a preços de R$ 13 a R$15 mil parcelados. E conseguem entregar aos moradores registro geral de imóveis, de terras da União, e ainda conseguem legalizá-las.”

O sociólogo disse que, na área da Baixada, ele nunca ouviu relatos de moradores expulsos de imóveis para revendê-los novamente: “Isso tem um risco para a própria milícia. Ela estaria queimando a sua própria imagem junto a essa população. O interesse maior das milícias é o controle dessas áreas politicamente. A eleição de miliciano nessas áreas é determinante. Se ele começa a atuar dessa forma agressiva, autoritária e enganando a população, ele vai sofrer as consequências.”

Conforme a secretaria municipal de Urbanismo (SMU), foram 312 embargos em 2018 e 2.788 multas aplicadas nas obras irregulares da Zona Oeste. Sobre as construções que seguirão o novo Código de Obras, a prefeitura informou que os técnicos da SMU mantêm o mesmo procedimento de fiscalização já adotado.

As fiscalizações são feitas por meio de vistorias locais e demais procedimentos, tais como notificações, intimações e multas. Questionada quanto à sugestão da criação da força-tarefa, a SMU informou que as ações de demolições da prefeitura, comandadas pela Coordenadoria de Operações Especiais, ligada à secretaria de Infraestrutura e Habitação, são feitas sempre de forma integrada com as forças de segurança - Polícia Civil, Polícia Militar e Guarda Municipal.

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