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Multidão assiste à performance do coletivo 'És uma maluca', censurada domingo

José Peres -
Após o governador Wilson Witzel mandar encerrar a exposição na Casa França-Brasil que fazia alusão à tortura durante a ditadura, grupo artístico faz performance para protestar contra a decisão
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O feitiço virou contra o feiticeiro. O que era para ser uma performance para os visitantes da mostra “Literatura Exposta”, cujo encerramento foi antecipado pela censura que fechou o evento antes do tempo regulamentar, virou no fim da tarde de ontem uma vigorosa manifestação contra a censura e a ditadura, com uma multidão que participou da performance do coletivo “És uma maluca” (EUM), do lado de fora da Casa França Brasil, no Centro, onde a exposição fora montada. Embora o governador Wilson Witzel tivesse negado ontem a censura – “Não importa qual era o tema, não houve censura”, afirmou à TV Globo - à performance que deveria ter acontecido domingo, o coletivo de Vila Isabel, na Zona Norte, mostrou ao que veio, com uma mulher deitada no paralelepípedo, saia erguida e calcinha à mostra infestada de baratas de plástico, que subiam pelo seu corpo. Foi a leitura do grupo da obra “A voz do ralo é a voz de Deus”. Com cartezes e palavras de ordem, no melhor estilo das manifestações pela democracia, a multidão soltou os bichos, diante de policiais armados até os dentes - que tentaram inutilmente desmentir a realização do evento antes dele começar. Se até então o “És uma maluca” era um ilustre desconhecido, a proibição alçou o coletivo, de um dia para o outro, à fama instantânea, como ocorreu com a mostra Queermuseum.

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Após o governador Wilson Witzel mandar encerrar a exposição na Casa França-Brasil que fazia alusão à tortura durante a ditadura, grupo artístico faz performance para protestar contra a decisão (Foto: José Peres)

“É proibido proibir trabalho sobre tortura, mas, não é proibido proibir a prática da tortura”, dizia um cartaz, como se o país tivesse retrocedido à ditadura militar, embora já tenha atravessado, desde então, 34 anos de regime democrático. Sinal dos tempos. Onde está o Queiroz?, perguntavam. O artista Jorge Salomão puxava o coro “abaixo a tortura”, enquanto o libertário artista Ernesto Neto observava o grupo com um largo sorriso. Espécie de catarse coletiva, coro contra qualquer risco ao exercício da liberdade, ao qual a sociedade brasileira já havia voltado a se acostumar.

Surgido em 2014 com integrantes – de 20 a 65 anos, sem número fixo porque as adesões vêm e vão e sem identidade -, que buscam a experimentação e sempre fizeram questão de manter o anonimato enquanto indivíduos, eles costumavam discutir em seus encontros a concentração da produção artística no eixo da Zona Sul, entre outros temas. “Não nos colocamos como aristas e abrimos mão de autoria”, diz um deles que, por coerência à proposta do grupo, pede para não ser identificado (a) ou que seja mencionado seu gênero. Só libera a idade: 32 anos, e a formação: design.

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A multidão repetiu palavras de ordem, punhos erguidos, como nos tempos da ditadura militar (Foto: José Peres)

A indiscutível criatividade do coletivo já começou causando. Na inauguração da mostra, em dezembro, o áudio gravado por eles para a instalação “A voz do ralo é a voz de Deus” também foi censurado e substituído por uma receita de bolo – subterfúgio semelhante ao que o JORNAL DO BRASIL costumava adotar em suas páginas censuradas pela ditadura militar. “Na primeira vez foi parecido com o que aconteceu no domingo. O áudio, que está na rede e qualquer um pode ouvir, traz a voz do presidente Jair Bolsonaro apoiando a censura, saindo de um ralo cercado por seis mil baratas de plástico. Foi censurado em cima da hora, como voltou a acontecer. Tudo muito estranho”, definiu. Na realidade, ontem não houve a nudez de duas mulheres, conforme era previsto.

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Policiais pareciam armados para enfrentar uma guerra, e não uma manifestação artística (Foto: José Peres)

Que a performance foi autorizada não há dúvida, já que as mensagens trocadas entre os organizadores e a secretaria estadual de Cultura foram exibidas pela Globonews. “Como havia nudez, eles apenas recomendaram que não fosse permitida a entrada de menores”, recorda o curador Álvaro Figueiredo. Segundo ele, o objetivo da mostra era privilegiar autores desconhecidos da periferia, como Rodrigo Santos, que assina o contundente “Baratária”, alvo da interpretação sorteada para o EUM, assim como foram os demais 10 textos selecionados pelos organizadores. Trata-se da história de uma menina que passa por um forte trauma de infância com baratas e, nos anos 1970, é torturada com os mesmos insetos (leia trecho).

O EUM se define como “um coletivo que busca expandir e agregar novas formatos, talentos e audiências poéticas a partir de uma plataforma autossustentável e horizontal.” E para quem ainda se pergunta de onde vem esse enigmático título, o anômimo (a) integrante do grupo esclarece: “É uma homenagem à avó de uma das participantes do coletivo, já falecida, que sofria de Alzheimer e mantinha vivas as recordações mais antigas. Ela contava para a neta que foi procurar emprego na mesma fábrica onde a mãe trabalhava, aos 14 anos, e esta, ao avistá-la, desabafou: ‘És uma maluca!’

A saga do Baratário

"Abre as pernas dela aí”. Parrudo, mesmo com uma de suas enormes mãos engessada, segurou seus dois joelhos e forçou para trás. Nua como estava, a posição deixava seu sexo exposto. Não era a primeira vez que seria violada — uma vez que os prendedores jacaré da máquina de choque foram apertados em seus lábios vaginais — mas Lenita agora tentara fechar desesperadamente as pernas. Quando Cazarré abriu a tampa da caixa, suas pupilas dilataram e ela voltou a ter seis anos de idade. A caixa estava cheia de baratas. Rindo, ele pegou uma, dessas grandes, de esgoto, e colocou na entrada de sua vagina. “E agora, você vai dizer quem eram os outros componentes da sua célula terrorista ou não?” Lenita achou o grito que calara no fundo da cova. Com o polegar, o demônio empurrou a barata para dentro dela. A estrutura áspera do inseto e o seu desespero em fugir a arranhava por dentro. Ela gritava, e gritava, e se debatia inutilmente com os braços amarrados, fazendo a corda de sisal cortar a pele de seus pulsos. Na sua cegueira seletiva, ela via apenas o escudo do Flamengo do braço de Cazarré e seu sorriso.

José Peres - A multidão repetiu palavras de ordem, punhos erguidos, como nos tempos da ditadura militar
José Peres - Policiais pareciam armados para enfrentar uma guerra, e não uma manifestação artística