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Grupo prepara espetáculo em homenagem à Joaquim Silva, rua que muitos consideram o coração da Lapa

José Peres -
Rua Joaquim e Silva
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A Rua Joaquim Silva na Lapa é um daqueles pontos da cidade em que convivem diferentes classes sociais. Ali se encontra um bom restaurante japonês e um depósito de bebidas com mercadorias com preços, obviamente, bem distintos. A rua, como mostra a linha amarela aqui nesta página, tem traçado diferente. Ela fica entre os Arcos da Lapa, onde aparece quase como uma reta, mas, quando se aproxima da Glória, dobra à direita, numa perpendicular que a leva até a extinta Praia Areias de Espanha, onde, diz a lenda, a mítica cantora Carmen Miranda aprendeu a nadar. A pequena notável, por sinal, mudou para lá em 1915, no tempo em que surgiram os primeiros prostíbulos, como diz Ruy Castro, biógrafo de Carmen. Ela é repleta de história. Daria para preencher bem mais do que duas páginas de jornal. Daria um filme; e também uma peça. O grupo Peneira percebeu tamanho potencial e resolveu retratá-la com diferentes linguagens: teatro, performance, audiovisual, urbanismo, poesia, música e dança. O cenário de tanta riqueza é...a Rua Joaquim Silva. “Estamos em fase de pesquisa para fazer o roteiro e estamos deparando com uma surpresa atrás da outra. A Rua Joaquim Silva tem um passado incrível, mas um presente super dinâmico”, diz Luiz Fernando Pinto, um dos diretores do espetáculo, com estreia em fevereiro.

Uma das histórias perpassa a poesia de Manuel Bandeira. Uma placa expõe que ele morou onde hoje é o Bar do Adalto, no nº 13. Nele, um poema é um bom ponto de partida para um passeio na via: “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? — O que vejo é o beco”. O “recado” do poeta está devidamente registrado no bar do Adalto. No beco, ou melhor, na rua, encontra-se, por exemplo, um cabaré. Duas mulheres conversam na janela, mas, quando perguntadas se podiam posar para uma foto, só aceitam se não aparecerem os rostos.

Macaque in the trees
Escadaria Selarón - Turistas povoam a escadaria revestida pelo ceramista e pintor chileno, cuja morte até hoje não foi esclarecida. Ele fez um trabalho artístico único, pintando azulejos que revestem 215 degraus (Foto: José Peres)

O sapateiro italiano Francesco Avena expõe em sua lojinha, no nº 15, um pôster com o Madame Satã, personagem emblemático da boemia da Lapa na primeira metade do século 20, num tempo em que a Bossa Nova ainda não tinha deslocado a noite da cidade para Copacabana. “Eu sempre consertava os sapatos dele”, conta Avena, com orgulho de ter convivido com uma figura histórica, lembrando que o cantor Tony Tornado e a bailarina Ana Botafogo também já usaram seus serviços.

A caminhada continua e, de repente, uma imensa quantidade de turistas muda radicalmente o ambiente. A Joaquim Silva é assim: múltipla. A Escadaria Selarón é o segundo ponto turístico mais visitado da cidade, só perdendo para o Cristo Redentor. Impressiona os estrangeiros o fato de que o pintor e ceramista chileno Jorge Selarón, cuja morte em 2013 até hoje segue, sem ser esclarecida, ter revestido 215 degraus com azulejo que ele próprio pintou.

A casa de Carmen Miranda foi demolida, mas todo mundo sabe em que altura da rua ficava o nº 53 em que a cantora residia. Por acaso, ali, uma barraca de vendas de caipirinha cheia de frutas lembra seus balangandãs. O choro também teve um dos seus maiores representantes na Rua Joaquim Silva. O criativo e virtuoso Jacob do Bandolim foi um dos seus ilustres residentes. Mas e hoje? Hoje a rua tem festa. Bailes funks são comuns no lugar. Domingo, veem-se nela crianças jogando bola e brincando de outras coisas. Domingo também é dia de bingo. “É um cenário diferente de outros espaços da Lapa, onde uma certa bossa underground ainda paira no ar”, comenta Alex Teixeira, um dos integrantes do grupo Peneira.

Macaque in the trees
Teatro na rua - Atores do grupo Peneira fazem uma performance numa das pontas da Rua Joaquim Silva, que termina nos Arcos da Lapa. A ideia é misturar linguagens: teatro, performance, poesia, música, dança, performance, urbanismo (Foto: José Peres)

Uma turma eclética no beco

O grupo Peneira se empolga com as descobertas na Joaquim Silva. São mais de 20 pessoas falando nomes, apontando casas, analisando a arquitetura eclética da rua. Mostram que a cidade é uma pesquisa de campo intensa para se fazer arte. E eles veem arte, por exemplo, na dona Marlene, moradora da Joaquim há mais de 50 anos e uma espécie de síndica do lugar. Organiza o já citado bingo dominical, próximo aos Arcos, mas também algumas festas e até mesmo os camelôs que transitam por ali.

Entram no bar do seu Antônio, proprietário há mais de 30 anos do bar da esquina da Joaquim Silva com a Travessa do Mosqueira. E visitam o xará deste, o seu Antônio do armazém de limpeza, porque ali é rua residencial também. Posam para foto numa carvoaria que funciona na rua há mais de 80 anos. Projetam-se para 80 anos atrás e se perguntam se naquele tempo havia exploração de trabalho na fabricação de carvão.

Tem um rapaz, observa um dos atores, que abriu o espaço há pouco mais de um ano e investe em moda, gastronomia e produtos naturais. Tem também a dona Daade, síria e proprietária do Hotel Love’s House, na esquina da Escadaria Selarón. Nesse espaço, recordam, foram gravados diversos filmes, novelas e clipes. A capa do disco “Maior abandonado” do Barão Vermelho foi feita lá.

Apontam para um vendedor de água de coco em frente à Escadaria Selarón. “Ele tocava no bloco da Joaquim Silva”, diz uma das atrizes, como se todo mundo soubesse que a rua tem bloco também.

Ali, o Ateliê do artista plástico Raul Mourão também se faz presente.

Macaque in the trees
Carmen Miranda - O hotel para solteiros que leva o nome da rua marca a altura onde morou a cantora. A Pequena Notável chegou lá com seis anos de idade e se mudou com 16. Diz a lenda que aprendeu a nadar na praia próxima à via (Foto: José Peres)

O grupo adora desvendar a rua. O Ateliê Arte em Madeira expõe peças e móveis na rua. Moradores de baixa renda também descortinam antigas casas de cômodos, com grandes corredores e banheiros coletivos.

Tudo ali interessa. Até mesmo a sede do Sindicato Nacional dos Compositores Musicais. “Ali estão sindicalizadas personalidades como Milton Nascimento e Tom Jobim”.

Para o grupo, a Rua Joaquim Silva é história, história viva.

José Peres - Rua Joaquim e Silva
José Peres - Rua Joaquim e Silva