
O que poderiam ter em comum o filme “Chuvas de Verão”, de Cacá Diegues, rodado em 1977, a novela global “Além do Horizonte”, de 2013, “Pecado Mortal”, novela do mesmo ano da Record, a série da TV Globo “A Segunda Dama”, de 2014, ou ainda “Um dia qualquer”, de Pedro von Krüger, ainda em processo de produção? Os quatro estão entre uma infinidade de projetos que usaram como cenário o bairro Marechal Hermes, na Zona Norte, um dos raros da cidade onde ainda é possível encontrar uma atmosfera de características suburbanas em estado puro.
Por 25 dias, Krüger gravou ali e, apesar da possível notoriedade instantânea que poderia representar ao distante bairro, a 32,7km do Centro da cidade, esse tipo de publicidade ainda é vista com reservas pelos moradores. “Tomaram o bairro todo. Claro que é bom, contudo, exigiu sacrifícios, porque ruas tiveram de ser fechadas e ficou um movimento anormal. Ajuda e atrapalha. Quem aluga o imóvel recebe alguma coisa, porém não vejo doações para reformar as escolas e praças do bairro”, pondera João Carlos da Silva Paula, presidente da associação de moradores local.

A experiência no bairro pelo diretor, que é também fotógrafo, não se limitou, entretanto, a esses 25 dias. “Foram mais dois meses de pré-produção na busca de locações. Fiz também uma pesquisa sobre os bate-bolas da região, os clóvis mascarados que animavam o carnaval de rua. Além do cenário, vários elementos foram incorporados à trama. Passei um mês morando na casa que alugamos na Rua Engenheiro Emílio Baumgart, que também sediou a produção, e vivemos uma integração que não era só usar e sair. Todos os figurantes do filme, inclusive, foram contratados no bairro”, relata Pedro von Krüger, 38 anos, que gravou em Marechal Hermes seu primeiro filme de ficção.
E não é só o cenário que remete ao subúrbio. A mentalidade de alguns dos moradores também parece ter parado no tempo. O administrador aposentado Everardo Silveira, 80 anos, mora há mais de 50 anos numa casa do lado ímpar da Emílio Baumgart, já alugada por ele duas vezes para a TV Globo. As casas são da década de 1910, destinadas aos servidores públicos mais graduados. Silveira é tão reservado que fala com o JORNAL DO BRASIL de longe, da porta semiaberta da casa tombada, como as da vizinhança — muro baixo, sem campainha, com a mesma varanda e três quartos das demais que se estendem pelos não mais de 2km da bucólica rua. O pequeno quintal da frente é cimentado e um cachorro pequeno ajuda na segurança, ao menos para fazer barulho. “As gravações foram feitas na parte externa da casa”, desconversa ele, que admite já ter gostado mais de morar ali no passado: “era mais sossegado”.

Hoje, Silveira divide o imóvel com duas filhas e o neto, que vivem na casa dos fundos. Ao completar 80 anos, vendeu o carro conforme planejara. Talvez, o furto do fusca do sogro da filha, ao visitar a família, tenha influenciado na decisão. Já a dentista aposentada Solange Rocha, 65 anos, que vive há mais de 40 anos na casa quase em frente, destacada das demais pelo rosa escuro com acabamentos em vermelho das esquadrias, viveu tantas violências no aparentemente calmo endereço que também vendeu seu carro. Só anda de Uber. “É uma rua tranquila, quase não tem movimento”, disse ela, pouco após o JB cruzar com um homem de muletas que passava por ali, pitando um cigarrinho de maconha.
Solange já passou por seis assaltos na porta de casa, sendo que, num domingo de 2008, quando se aproximava do portão, sofreu um sequestro-relâmpago, que terminou sem consequências mais graves. “Os malandros dos morros próximos costumam dizer que essa rua é o shopping deles”, conta ela. Nem por isso passa pela sua cabeça se mudar de lá. “Aqui é muito tranquilo. Quando começa a escurecer, fica quase um cemitério. De manhã cedo e no entardecer, é uma sinfonia de passarinhos”, descreve, com uma emoção de quem parece relevar as experiências violentas. Solange é a única das cinco irmãs que mora em casa e, por isso, o movimento no local é intenso, protegido pelo mal-encarado boxer Zion.
Outra rua que costuma ser eleita para cenários é a Comandante Magalhães de Almeida que, apesar de muito próxima à Baumgart — ambas desembocam na Praça General Osvaldo Cordeiro de Farias —, é bem diferente. A Magalhães tem duas pistas para cada sentido de trânsito e a alameda central é arborizada com pés de tamarindo. Ao contrário dela, a Baumgart possui poucas árvores e sombras, tanto que o verão é cruel para os que moram ali e, à exceção de um colégio que já foi quartel, não tem nenhum estabelecimento comercial, como a Magalhães, onde existem pequenas biroscas, brechós, o Hospital Municipal Carlos Chagas e o Teatro Armando Gonzaga, projeto de 1954 do arquiteto Affonso Eduardo Reidy — que também assina o Museu de Arte Moderna (MAM-RJ) —, com painéis de Paulo Werneck. O clima no lugar é de decadência, com sobrados mal conservados e limpeza que deixa a desejar.
Esquadrias de pedras portuguesas
Madeleine Montanha Costa, que não diz a idade nem por decreto, mora no sobrado mais bonito da Magalhães de Almeida, de 1913. De estilo eclético, tem nas esquadrias mosaicos em pedras portuguesas brancas e pretas, inusitado acabamento executado por portugueses que originaram o recanto do bairro conhecido como Pequeno Portugal. Ela e o marido, o policial aposentado Abdula Mansur, de origem árabe, 76 anos, dividem o imóvel de pé-direito alto, projetado para ser de uma única família.
Madeleine negou o aluguel para o filme sobre Eder Jofre por discordâncias com a produção. “Não podia ter nada novo na casa, foram aumentando o preço, mas não fechei. Aluguei para a novela “Além do horizonte”, da piranha que virou crente e não deu certo, e todos pediam para ela morrer. Aluguei só a parte da frente. Impliquei porque sou a única das irmãs que não é crente. Minha mãe sergipana e meu pai, mineiro, vieram para cá quando se casaram, porque ele era da Aeronáutica. Antigamente era muito bom, depois virou um bairro de classe média, só tem botequim e salão de beleza”, desdenha, com seu humor afiado.
Madeleine não se conformou quando o Projeto Rio Cidade removeu o coreto da praça. “Minha mãe me fantasiava de fada, de odalisca e me levava para lá”, recorda. O carnaval do bairro, por sinal, é famoso. Apesar de ouvir muitas histórias sobre violência, até hoje nada aconteceu com ela: “Também, não dou mole. Não ando a pé, só me desloco de táxi”, diz. O tal coreto foi substituído por outro, cuja inauguração, há quatro anos, foi comemorada pelos moradores no último feriado de 15 de novembro.
Com a recém adquirida experiência na ficção com “Um dia qualquer”, Pedro vom Krüger afirma que existe uma única ressalva à perfeição que é Marechal Hermes em termos de cenários e ambiência. “Como o filme é cheio de diálogos, fui obrigado a fazer muitos cortes, por conta do barulho dos aviões do aeroporto do Campo dos Afonsos”, revela. E o presidente da associação de moradores do local, João Carlos da Silva Paula, aproveita o protagonismo do bairro para apontar o principal problema que aflige os moradores: “Marechal é um bairro muito antigo e sofremos com os alagamentos provocados pelas chuvas de verão. A tubulação do bairro, que hoje tem mais de 100 mil moradores, com apenas duas saídas de esgoto, não dá vazão. O poder público simplesmente não acompanhou o crescimento de Marechal”, lamenta.
Histórico do bairro
Conforme o professor de História Alfredo César de Oliveira, nascido no Pequeno Portugal, o presidente que deu nome ao bairro replicou no Brasil a vila operária — primeira do país — que conheceu na Alemanha, em 1910. Influenciado pelo movimento reformista-social que conheceu na Europa, Hermes pretendia solucionar a questão habitacional incentivando a construção de vilas operárias. Durante sua gestão como presidente (1910-1914), Hermes viveu a queda do ciclo do café e a ascensão da borracha. “Ele era culto, liberal e paradoxal. Era empreendedor e trouxe ao país a percepção da coisa pública”, elogia Oliveira.
Sem modéstia, o presidente batizou este que foi um dos primeiros bairros projetados para a classe média do país com seu próprio nome, inaugurado em 1º de maio de 1913 e idealizado pelo 1º tenente-engenheiro do Exército Palmyro Serra Pulcherio, convidado para a empreitada com a credencial de seu projeto na vizinha Vila Militar. Para isso, o terreno de 600 mil m², resultado da divisão das fazendas de Sapobemba — que deu a primeira denominação ao bairro — e Gericinó, seria usado para a construção de 738 casas e sobrados para cinco mil pessoas. Contudo, a escassez de recursos, provocada pela crise econômica do país e pela 1ª Guerra Mundial (1914-1918), reduziu em 30% o projeto inicial. Foram erguidas apenas 170 casas. Da previsão de seis escolas, restaram duas, uma delas de Primeiro Grau e a outra, técnica, a Barão de Mauá.
Com a multiplicação das favelas do entorno, a segurança no bairro, apesar da vizinhança com a Vila Militar, foi ficando cada vez pior. Além das casas que restaram e das amplas avenidas, o mais vistoso marco do bairro é a Estação Ferroviária, inspirada nos modelos ingleses e inaugurada em 1913. De estilo eclético, exibe telhas e arcos de ferro franceses, assim como azulejos de origem alemã e belga.