
A agilidade de Jacy Oliveira, 86 anos, chega a causar espanto. Viúva, dois filhos e dois netos, ao se aposentar ela entrou, com 60 anos, na Oficina de Pintura em Tecidos – uma das nove que acontecem na Unidade da Terceira Idade do Instituto de Atenção à Saúde São Francisco de Assis, no Centro -, onde aprendeu a técnica e passou a ensinar seu know how às colegas. “Sou muito feliz aqui. Moro em São Cristóvão, saio de casa às 7h e saio daqui após as 16h. Agora estamos nos dedicando aos motivos natalinos”, diz ela, enquanto passa de uma a outra idosa com espantosa velocidade e transbordantes alegria e carinho.
Jacy está entre as centenas de pessoas que continuam circulando diariamente pelo instituto, antigo Hospital Escola São Francisco de Assis, cuja pedra fundamental foi lançada em 1879 pela princesa Isabel. Foi essa a premissa para iniciar a restauração: manter o complexo em funcionamento. Em dez anos, estão concluídas 80% das obras que garantem a integridade do imóvel de 4,8 mil m², distribuídos em oito prédios, que esteve prestes a ruir. Mas ainda há muito por fazer.
“Confio na sensibilidade dos parlamentares para que as obras possam ser concluídas”, desabafa o diretor geral da instituição, vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto José Leal. Para isso, em valores não atualizados, são necessários R$ 32 milhões, que viabilizam a restauração das unidades 1, 2, 3 4 e 7ª.
O que não falta ao complexo neoclássico são histórias. O prédio foi inaugurado como Asylo da Mendicidade, e começou a separar os três grupos considerados marginais, até então atirados em um mesmo saco de gatos: os pobres, bêbados e drogados, loucos e ladrões. O asylo foi o terceiro do tripé: a Casa de Correção, da Rua Frei Caneca, o primeiro presídio do país, foi inaugurada em 1850, e o Hospício Pedro II, na Praia Vermelha, em 1852. No fim do século XIX começou a segunda etapa do asylo, à beira da então Visconde de Itaúna, hoje Presidente Vargas, com a construção de mais três prédios que configuraram o sistema pan-óptico.
O sistema arquitetônico, criado em 1785 pelo jurista inglês Jeremy Bentham, permitia o policiamento de um presídio por um único vigilante, sem ser visto pelos presos, o que ajudava a melhorar o comportamento diante do medo de serem observados. Para o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), o século XVIII inaugura sistemas disciplinares que permitiam uma vigilância cada vez mais eficaz (“Vigiar e Punir”, de 1975), considerado por outro filósofo francês, Gilles Deleuze (1925-1995), como a base da sociedade de controle. Mal sabiam eles o que estava por vir no XXI, com o controle exercido por celulares, Internet e câmeras em toda a parte.
“Inaugurada em 1855, a Casa de Detenção de Recife, prédio também de estilo neoclássico, foi outro que adotou o sistema pan-óptico. Hoje é um centro cultural”, informa Paulo Belinha, arquiteto da UFRJ.
Hoje, a torre, ou prédio 5, que centraliza a visão do conjunto embora nunca tivesse sido usada para vigiar, tem o restauro da fachada e telhado concluídos, sem acabamentos. “Temos aproveitado o espaço para atividades como as danças de quadrilha dos idosos e instalação de posters de trabalhos acadêmicos, entre outros”, diz Leal.
Outra curiosidade é o fato de antes da abertura da Avenida Afonso Cavalcante, na Cidade Nova, a Escola de Enfermagem fazia parte do conjunto. Ali estudavam as filhas das elites e da classe média da época. Como era uma região de baixo meretrício, foi construído um túnel, para que as meninas pudessem passar dali ao hospital sem se misturar às mulheres da vida. O túnel ainda existe e está vedado nas extremidades. Hoje ainda há quem se lembre de que ali as mocinhas bem nascidas aproveitavam para fumar escondido e manter seus furtivos namoros.
Etapas da restauração
As obras de restauração do complexo, iniciadas em 2012 – após uma longa jornada burocrática que começou em 2002, envolvendo o Instituto Nacional do Patrimônio Histórico, por conta do tombamento, em 1983 – concluíram o bloco 7, o telhado, a fachada e esquadrias dos prédios 1, 2, 3, 5 e 6; e o anel de infraestrutura de água e esgoto e de lógica, com a instalação dos cabos de fibra ótica. E ainda a iluminação monumental, o sistema de pressurização do abastecimento de água e a bomba para combate a incêndio, correspondentes a investimentos de R$ 13 milhões. Ainda este ano, estão em andamento as obras de recuperação do telhado e da fachada do prédio 4, que consome mais R$ 1,5 milhão, e a instalação da torre para elevadores, que vai custar outros R$ 587 mil.
A previsão, entretanto, era concluir as obras em 2016, no pacote Olimpíadas, já que o complexo fica na rota por onde passou a maratona. Como tudo depende de recursos, porém, o ritmo caiu na mesma proporção em que o dinheiro foi deixando de entrar. O que não caiu foi o volume de procedimentos realizados nos diversos setores que funcionam no local: só em 2017, foram 160.235, fora a atividade da Clínica da Família integrada ao complexo, além dos 260 alunos que circulam nas unidades de ensino, entre residentes multiprofissionais e mestrandos.
O instituto não tem emergência e oferece atendimento a pacientes dependentes de álcool e drogas, às doenças sexualmente transmissíveis, de exames de endoscopia à reabilitação neuropediátrica, para crianças com microcefalia, entre outros problemas. Em continuidade à vocação do complexo de cuidar, são disponibilizadas ainda terapias como florais de Bach a acupuntura. Quem passa pela Presidente Vargas constata que algo já mudou por ali, com as pichações da fachada já caiadas de um tom ocre, embora a base de granito ainda aguarde a limpeza que será feita com um caro material importado da Itália.
Para 2019, uma proposta espera a licença pela Câmara Federal para o orçamento de R$ 11 milhões, destinados à restauração dos prédios 5 e 6. Tudo, entretanto, vai depender da boa vontade dos parlamentares e não há previsão à vista para a conclusão das obras.