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Menino de favela, capa da "Life" e sucesso mundial em 1961, é reencontrado pelo JB

Fundação Gordon Parks -
Flávio, aos 12 anos, quando foi para os EUA e virou uma celebridade
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Em 1961, aos 12 anos, Flávio da Silva virou uma celebridade do dia para a noite. Involuntariamente, o menino nordestino, morador da Favela da Catacumba, removida das margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, em 1969, acabou por personificar o apoio da então célebre revista “Life” à política de contenção à ameaça comunista, a “Aliança para o Progresso”, anunciada pelo presidente John Kennedy em março de 196. A revista, cuja tiragem atingia sete milhões de exemplares, foi bombardeada por uma enxurrada de cartas, uma reação que turbinou a doação de uma casa de alvenaria de dois pavimentos à família de Flávio, em Guadalupe, na Zona Norte. O JORNAL DO BRASIL reencontrou Flávio, hoje um autônomo anônimo de 69 anos, vivendo na mesma casa que ganhou com a família.

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Flávio, aos 12 anos, quando foi para os EUA e virou uma celebridade (Foto: Fundação Gordon Parks)

Tudo começou quando a avó de Flávio encheu uma pequena tina com água quente para o banho do neto, e acabou por esquecer o menino exposto aos ventos que sopravam da lagoa até o alto da Rua Sacopã, onde a família vivia antes de se mudar para a vizinha Catacumba. O descuido causou uma doença que se tornou um sério problema pulmonar, diagnosticado e tratado quando Flávio — arrimo do clã, obrigado a deixar os estudos de lado para cuidar dos seis irmãos mais novos — foi encontrado pela “Life”.

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Flávio, aos 69 anos, continua na casa recebida da revista "Life", em 1961 (Foto: Evandro Teixeira)

Três semanas após a primeira reportagem, a revista arrecadou cerca de US$ 40 mil dos leitores de classe média americana. O efeito solidariedade permitiu ao menino passar dois anos sob tratamento em um hospital de referência em doenças pulmonares em Denver, nos Estados Unidos, assistido nos finais de semana pela família Gonzalez, de origem portuguesa. Em poucos meses, ele se tornou um dos raríssimos brasileiros alçados à capa da “Life” nas edições seguintes à reportagem inicial, que ocupou várias páginas, em preto e branco, e foi capitaneada pelo também célebre fotógrafo e cineasta americano Gordon Parks (1912-2006), diretor de “Shaft”, sucesso de bilheteria da tela grande.

Ao fazer uma reportagem sobre Parks para o “Diário da Noite”, em 1971, o fotógrafo Evandro Teixeira, 83 anos, que passou a maior parte de sua vida profissional no JORNAL DO BRASIL, aproximou-se do colega norte-americano e reencontrou esta saga na Exposição “The Flávio Story”, exibida de fevereiro a setembro deste ano, no Instituto Moreira Sales (IMS), na Gávea, Zona Sul da cidade, que também virou um livro de 304 páginas, editado pelo IMS.

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Flávio, entre Sérgio Burgi, diretor de Fotografia do Instituto Moreira Salles, e Evandro Teixeira (Foto: Divulgação Instituto Moreira Salles)

“As pessoas achavam que a reportagem foi algo forçado, mas não. Houve uma sequência de muitas conversas, quando resolveram mostrar minha história. Parks batalhou para produzir a matéria do jeito que ele queria, focada na questão humana, e fez o trabalho com sete máquinas fotográficas diferentes. Foi muito bom o tempo que passei em Denver, mas também houve puxões de orelha dos que me cobravam adesão. Mantive o contato com a família que me assistiu, eles agiam como se fossem meus pais”, recorda Flávio, hoje um franzino idoso de apenas 38kg e 1,62m. Quando voltou ao Brasil, trouxe tantos brinquedos que sua bagagem chegou a acusar excesso de peso.

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Favela da Catacumba, já removida (Foto: Divulgação)

Filho de pai autônomo e mãe lavadeira, Flávio conseguiu recuperar a saúde, porém, quando voltou ao Brasil deparou-se com um novo problema: como tinha pouco estudo, acabou por esquecer o português e só encontrou uma escola em São Paulo que o aceitou para voltar ao ensino. “Tive que reaprender o português, mas relutei, porque foram muito bons os dois anos que passei nos Estados Unidos”, lembra. Foi nessa escola paulista que completou o Primeiro Grau e, apesar da extraordinária experiência que a vida lhe ofereceu, ficou só com o ensino primário. Aos 17 anos, começou a trabalhar com biscates de ajudante de pedreiro. Foi também copeiro e ajudante de cozinha. Continuou morando com os irmãos em Guadalupe — hoje, apenas dois se mantêm no endereço —, se casou e teve dois filhos homens e uma mulher. O inglês? “Ainda dá para o gasto”, brinca, com o jeito humilde que nunca perdeu.

Troco de Chateaubriand

Uma curiosidade daqueles tempos foi a reação do empresário Assis Chateaubriand à série da “Life”. Sua revista “O Cruzeiro” — que mantinha a excepcional tiragem para os padrões brasileiros de 700 mil exemplares, mas a décima parte da “concorrente” — resolveu peitar a “ousadia” dos americanos em falar da nossa miséria, com a hipocrisia de manter por debaixo do pano a motivação da série, que nada mais era do que a diplomacia da “Aliança para o Progresso”, responsável também pela criação do personagem Zé Carioca pelos estúdios Walt Disney e pelo sucesso de Carmem Miranda nas terras de Tio Sam, entre outros (veja abaixo).

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O fotógrafo Gordon Parks, na capa do livro sobre Flávio (Foto: Fundação Gordon Parks)

Com os brios atingidos, Chateaubriand convocou o fotógrafo, também famoso Henri Ballot, hoje com 97 anos, nascido em Pelotas, no Rio Grande do Sul, e educado na França, onde viveu muitos anos, para registrar as populações pobres de Nova York. Ballot voltou dos Estados Unidos com a reportagem — no mesmo estilo da matéria da “Life”, em preto e branco — “Novo recorde americano – Miséria”, publicada no mesmo ano da série americana: 1961. Foi o troco de Chateaubriand.

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Vila Kennedy fazia parte do pacote

Um outro efeito colateral da “Aliança para o Progresso” no Rio de Janeiro foi o financiamento das 5.054 unidades habitacionais que integraram a Vila Kennedy, inaugurada em data estrategicamente escolhida pelo governador Carlos Lacerda: 20 de janeiro de 1964, dia de São Sebastião. O presidente Kennedy, que inspirou o nome da vila, morreu assassinado dois meses antes da inauguração.

O conjunto, que logo se transformaria em uma das áreas mais violentas da cidade, foi erguido na Zona Norte, à margem da Avenida Brasil, no trecho até então chamado de Avenida Bandeirantes. Mudaram-se para lá os moradores removidos do Morro do Pasmado, em Botafogo, e da Praia do Pinto, no Leblon, ambos na Zona Sul; da favela Maria Angu, na Penha, na Zona Norte; e, a partir de 1965, da Favela do Esqueleto, no Maracanã, na Zona Norte, em área mais tarde ocupada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

No fim da década de 1960, a embaixada dos EUA doou para a vila uma réplica da estátua da Liberdade, confeccionada em zinco pelo mesmo autor da original, o alsaciano Frédéric Auguste Bartholdi, instalada na Praça Miami. A Vila Kennedy foi transformada em bairro em julho de 2017, quando passou a integrar a 17ª Região Administrativa do município.

Evandro Teixeira - Flávio, aos 69 anos, continua na casa recebida da revista "Life", em 1961
Divulgação Instituto Moreira Salles - Flávio, entre Sérgio Burgi, diretor de Fotografia do Instituto Moreira Salles, e Evandro Teixeira
Divulgação - Favela da Catacumba, já removida
Fundação Gordon Parks - O fotógrafo Gordon Parks, na capa do livro sobre Flávio
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life | memória | menino | rio