ARTIGOS

O papel higiênico

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Por MIGUEL FERNÁNDEZ Y FERNÁNDEZ

Publicado em 07/03/2023 às 15:35

Amigo nosso, engenheiro hidráulico-sanitarista, foi participar de um evento no colégio dos netos, um colégio bilíngue americano em uma cidade brasileira. Ao ir ao banheiro deparou-se com um aviso insólito, em português e em inglês: “não colocar papel higiênico usado no vaso sanitário, colocar no cesto”.

Ora, o papel higiênico, formado por pequenas fibras de celulose, produzido para desmanchar na água, especialmente depois de usado para limpar o bumbum, é para ser descartado no vaso sanitário, por motivos sanitários: evitar que animais e insetos como moscas e baratas se untem com restos de fezes e passeiem por outros lugares espalhando o que não se deve espalhar; evitar odores, enfim, não há um motivo razoável para que não se jogue o papel usado no vaso sanitário.

Os esgotos sanitários, especialmente o sistema normalmente adotado no Brasil (separador absoluto) garantem um transporte seguro dos dejetos até a estação de tratamento de esgotos e, mesmo que não exista um tratamento convencional, a simples diluição e o tempo de exposição dos agentes patogênicos a um meio a eles hostil em termos físico-químico-biológico, já garante uma boa melhora na possível transmissão de doenças.

Se “entope” é porque a instalação está malfeita. Deve ser consertada pois vai entupir com ou sem o papel higiênico que, leva a culpa por todas as barbaridades que se jogam nos vasos sanitários, deliberadamente ou por acidente, o pessoal da manutenção das redes de esgotos que o diga: absorventes íntimos, fraldas, peças de roupa, brinquedos de crianças, embalagens, revistas, enfim...

Outro dia esse mesmo amigo foi visitar parente que mora em condomínio fechado novinho, alto padrão e, ao ir ao banheiro, foi advertido: jogar papel higiênico no cesto! Perguntou ao parente onde tinha estudado, mas não havia relação com colégios bilíngues.

Ocorre que, essa opinião de que o papel higiênico, depois de usado, deve ser colocado em um cesto, vem se generalizando e, nosso amigo, sendo profissional da engenharia sanitária começou a se aborrecer e ao mesmo tempo se interessar pelo assunto.

Perguntou ao parente: “porquê”? A resposta foi similar à da direção do colégio americano: “entope, é o que me disseram”. Disseram quem, cara-pálida? Foi a primeira pergunta que lhe veio à mente, mas conteve-se. Entretanto o parente acrescentou um esclarecimento: me disseram que a caixa de descarga não tem “pressão” (sic) suficiente para levar o papel, só com a “válvula-de-parede”, e ali era com caixas de descarga, para ”economizar água”. Nosso amigo perguntou se a caixa de descarga tinha dois estágios de descarga, um para o “número 1” (menos água) e outro para o “número 2” (mais água) e se a instalação estava correta (as válvulas de parede modernas também têm esses dois estágios). A resposta foi de ignorância total do assunto.

A curiosidade científica de nosso amigo o levou a inspecionar a caixa de descarga e descobrir que a construtora e a administradora regularam todas as caixas para encher só até a metade, provavelmente com o intuito de economizar água, portanto o fluxo obtido só era suficiente para o uso tipo número 1 (só urina) mas insuficiente para o uso, digamos, “pleno” (número 2 com algum papel higiênico).

As concessionárias municipais fornecedoras de água e dos serviços de esgotos se aproveitam desses "discursos" de economia de água para o planeta (como se a água fosse abduzida), para economizar, pois menores “volumes” de água consumidos geram menores investimentos ou os adiam, mesmo quando há água em abundância, mesmo sabendo que a diluição dos esgotos em mais água também é um tratamento.

As construtoras dos imóveis usam argumentos semelhantes e economizam ao fazer banheiros pequeninos, sem coluna de água para descarga-de-parede (diâmetros menores) e sem bidê (para maior higiene e menos papel higiênico) deixando pontos para duchinhas frias, que me parecem improvisações muito pouco práticas. O melhor mesmo é um bidê.

Esses assuntos conduzem o pensamento a importantes dúvidas existenciais que permeiam o tema, algumas das quais merecem reflexão: o rolo de papel desenrola junto à parede ou pela tangente oposta?; o canhoto usa o papel com a mão direita levantando a nádega direita ou vice-versa?; o papel higiênico é melhor que nada, mas continua besuntando e espalhando o problema sem resolver inteiramente.

Afinal, quanto de papel higiênico deve ser usado racionalmente até dar uma descarga? Convenhamos que um rolo inteiro vai acabar entupindo qualquer coisa. Seriam três folhas duplas de 15cm? Ou quatro?; o contribuinte precisaria dar uma descarga antes de dar por concluídos os trabalhos? Levanta e senta de novo? Ou termina em pé? Onde ficam as cuecas? (ou as calcinhas?).

Quanto às duchinhas, só o jato de água resolve? Precisa esfregar? Precisa sabonete? A pessoa segura a duchinha com uma mão e “enxágua” ou “esfrega” com a outra? Como será? As duas mãos entre as pernas? Cabem? Uma mão por um lado a outra pelo meio? Qual a mão com a duchinha e qual a do “enxagüe”? Uma mão por cada lado não dá, pois, as pessoas ainda não levitam. Enxuga com o quê?; o uso da duchinha é necessidade, higiene ou acrobacia?

Nessa linha de divagações, há muitos anos, ouvi o querido amigo Vieira, também engenheiro com passagem no ramo sanitário (ex-presidente de importante companhia de saneamento) contar o que sua avó, dizia no início dos anos 50: “Ainda vai chegar o dia em que até para cagar teremos que pagar.”

Esse dia chegou já faz tempo. Em paralelo, também diminuíram as doenças, aumentou a longevidade, o conforto e o bem-estar, mas ainda falta as pessoas se conscientizarem que um mundo moderno exige também mais cuidados e conhecimento do entorno, não só dos telefones móveis e seus “aplicativos”.

Educação, cultura e higiene não são só “luxos culturais”, mas também e principalmente conhecimento técnico e saúde. Saber um pouquinho como funciona o sistema eletro-hidráulico-estrutural de uma residência, uma escola um comércio, enfim, é cultura útil e necessária para uma nação se desenvolver e não fazem mal a ninguém.

Diria até que educação, higiene e um mínimo de conhecimento técnico são prioritários em relação ao que entendemos como cultura, que é o que nossas oligarquias e colonizadores nos inseminaram e que terminam por ser luxos burgueses.

Tudo sem diminuir as artes, a literatura, a filosofia, pois não existe nação nem civilização sem arte, literatura, filosofia, mas dependendo do estágio em que a nação está, há atividades mais essenciais e atividades, digamos, menos essenciais. Darci Ribeiro dizia muito bem: o Brasil é a única nação ainda em formação no mundo. Ainda! Não se deve colocar o carro na frente dos bois. Essencial é essencial, supérfluo também é essencial, mas nem tanto. Acho que “para bom entendedor, meia palavra basta”.

Os engenheiros de merda (não merda de engenheiros) precisam falar, talvez gritar, ser ouvidos e valorizados e a disseminação do conhecimento em saneamento básico (água, esgotos e lixo), incrementada como cultura de base para a população. Esse é “o papel” do engenheiro sanitarista.

Esse “papel higiênico do engenheiro” não é para ser descartado, nem na lixeira, nem no vaso, nem das preocupações dos planejadores, nem dos cidadãos. E por esse papel precisamos nos orgulhar, brigar, sem precisar ser violentos ou grossos, mas sem se preocupar em ser politicamente corretos pois, muitas vezes, o “politicamente correto” só serve para calar a razão e a indignação, tão em falta hoje em dia.



*Engenheiro consultor

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