ARTIGOS

O entulho e a ignorância

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Por ADHEMAR BAHADIAN *
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Publicado em 05/02/2023 às 09:17

A passo firme, sem histrionismo nem jactância, os três Poderes da República retomam a trilha democrática interrompida por quatro anos de entulho autoritário e ignorância atávica. Tanto Rosa Weber quanto Rodrigo Pacheco, presidentes do Poder Judiciário e do Congresso Nacional, reafirmaram o compromisso das Instituições com o Estado Democrático de Direito e sobretudo com a Constituição de 1988.

Não é pouca coisa diante dos ataques verbais e materiais sofridos por ambas as Casas, juntamente com a sede do Poder Executivo, no vergonhoso e insultante 8 de janeiro próximo passado.

Pouco a pouco, nossa bandeira nacional reassume sua dignidade de símbolo de nossa nacionalidade e perde a coloração amesquinhante a que foi levada durante quatro anos de vivência totalitária.

Pouco a pouco, o Brasil retoma diante de nossos parceiros nas Nações Unidas seu perfil de país amante da Paz, expresso muito antes de assinar a Carta de São Francisco, documento seminal do compromisso dos povos civilizados contra as ideologias nazi-fascistas derrotadas na Segunda Guerra Mundial.

Ilusório, porém, pensar que estamos livres de traições como as que vimos neste janeiro de 2023, quando nossa Democracia foiassaltada por bandos de saltimbancos impulsionados pela má-fé e pela criminalidade lesa-Pátria.

Somos hoje um país ainda mal saído de uma aventura traiçoeira destinada a subverter a ordem constitucional, a soberania popular e a determinação de consolidar neste país o ideal de crescermos como irmãos, senhores de um destino de grandeza inscrito em nosso hino pátrio, mas infelizmente ainda longe de se tornar realidade.

Não nos iludamos. A mordida da moreia assassina que nos golpeou ainda sangra e exige que o poder da Justiça se faça sentir de forma exemplar, em estrita observância do direito de defesa dos acusados. Não somos torquemadas. Não caçamos bruxas nem somos signatários de inquisições medievais, suas torturas e suas fogueiras.

Os inquéritos e diligências do Poder Público, longe de serem mecanismos de vingança, são a expressão da legítima defesa da cidadania submetida durante quatro anos aos ataques sórdidos dos que solertemente pretendem instalar no Brasil um regime tão odioso quanto totalitário.

Um regime que, sob a epiderme de uma nomenclatura democrática, erige um pódio ao destempero mais sórdido e ignorante de defesa à guerra fratricida em nome de uma hipotética luta por direitos já sobejamente inscritos em nossa Carta Constitucional.

Vivemos no Brasil nos quatro últimos anos uma desfaçatez à Carta Constitucional, uma tentativa de fazê-la explodir com a ajuda de bombas terroristas nos pátios de aeroportos ou na demolição de torres de transmissão de energia elétrica no território nacional. E mais do que nunca é preciso que se saiba que a cidadania brasileira tem pelos agentes dessas ações criminosas, efetuadas ou simplesmente tentadas, a mais profunda repulsa, a mais contundente condenação, principalmente quando tiverem sua origem, material, intencional ou ideológica, nos mais altos escalões da República.

A retomada dos trabalhos do Judiciário e do Legislativo brasileiros não deixa dúvidas até mesmo pela leitura dos discursos de seus presidentes, Rosa Weber e Rodrigo Pacheco, de que as instituições da República defendem o legítimo debate político, salutar em qualquer Democracia. Mais até: as Instituições estão abertas aos que por ideologia pretendam substituir os cânones que nos orientam politicamente. Desde que o façam abertamente e que estejam igualmente abertos ao contraditório democrático, parlamentar, jornalístico e acadêmico. E sobretudo cívico.

O intolerável, o criminoso será reincidir nos atos covardes e hipócritas de defender uma liberdade econômica que na realidade perpetua uma desigualdade social a nos envergonhar como seres humanos.
Intolerável será valer-se desta ou daquela crença religiosa para perpetuar a ignorância ou para estigmatizar os que rezam por outras cartilhas, como se no Brasil fossemos uma teocracia fundamentalista a restringir o direito de minorias de viverem em paz com suas religiões, crenças ou afetos. Mesmo que os homens vistam rosa e as meninas ostentem o poder de seus corpos.

Intolerável será fazer do ensino em qualquer nível um apanágio de elites afortunadas em detrimento do legitimo direito fundamental inscrito na Constituição.

Intolerável será impedir o acesso a medicamentos em nome de execráveis regras oligopolísticas, revestidas do manto rasgado de um comércio internacional livre na doutrina e manipulado no mercado.

1) Até hoje ainda ressoam nos corredores do Instituto Rio-Branco, na época ainda sediado no velho Itamaraty, o debate-aula entre Cleonice Berardinelli e José Guilherme Merquior, então professora e aluno respectivamente daquele Instituto. Cleonice foi uma das professoras que mudam os destinos dos alunos. Como Santiago Dantas, Ebert Chamoun, Arthur Weiss, Mário Henrique Simonsen, e sobretudo, Portella Nunes, psiquiatra emérito e professor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ cujas aulas lotavam os auditórios e eram acompanhadas por alunos de veterinária, engenharia e até pelo pipoqueiro do Pinel. Todos nos deixaram. Mas vivem em nós. Sempre.

2) Releio pela terceira vez “O tempo e o Vento” de Érico Veríssimo. Desta vez, na ordem inversa; do fim para o começo. Érico me fez aprender a ler aos 15 anos com o seu “Olhai os lírios do Campo”, a primeira vez que atravessei a noite com um livro. Mas, isso foi antes do “Amor nos Tempos do Cólera” de Garcia Marques. Érico Veríssimo foi o mais injustiçado de nossos escritores pela crítica dogmática e pedante dos anos 40.

3) Lula, diante de um visitante germânico, disse alto e bom som. O Brasil não vai entrar na guerra da Ucrânia. Não vê o que de bom nos traria entrar na pretensiosa OCDE. Informa que o acordo Mercosul-União Europeia tem graves inconvenientes dentre os quais o capítulo sobre compras governamentais. Guedes, o posto Ipiranga, proclamou que, em dois meses, com a orientação dele, o Brasil assinou um acordo que negociava por vinte anos. Não foi a única irresponsabilidade que nos deixou o frentista.

4) Com a máxima vênia de meus colegas que acreditam no papel saneador da OMC, me permito dizer que sem uma boa sacudidela nas regras de propriedade intelectual no Acordo Trips, a reforma da saúde pública no Brasil continuará a ser para inglês ver e a Big Pharma aproveitar.

5) É só. As lojas Americanas explicam o resto.

 

*Embaixador aposentado

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