ARTIGOS
Religião e preservação do bem comum
Por DANIEL GUANAES
Publicado em 26/01/2023 às 19:37
Alterado em 26/01/2023 às 19:37
Há cinco séculos um pastor e poeta inglês chamado John Donne escreveu em suas meditações um poema cujo título é Por quem os sinos dobram. Nele, dizia: Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontório, ou perdido o solar de um teu amigo, ou o teu próprio. A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca mandes indagar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.
Seu propósito foi evocar nas pessoas a consciência de que, a despeito das nossas singularidades, integramos uma realidade maior, conectada e multilateralmente afetada pelo que ocorre a uma de suas partes. As palavras da sua antiga poesia continuam necessárias na atualidade. A belicosidade resultante da indisposição para lidar com as diferenças tem provocado o enfraquecimento da noção de que a manutenção dos nossos tecidos sociais depende da compreensão de que somos fraternos, e todos igualmente responsáveis pela preservação do bem comum.
Por bem comum me refiro à representação deste lugar sagrado do qual depende a nossa existência. A despeito do que nos distingue, há uma plataforma simbólica na qual nos encontramos e sobre a qual todos caminhamos. Ela é construída por nós, sendo formada pelas compreensões morais que subscrevemos e pela ética que praticamos. É plural, policromática e multiforme. É ela que dá sustentação aos caminhos que percorremos enquanto sociedade. Sua importância é tamanha que sem ela caímos numa espécie de vazio insustentável.
Ao lado da filosofia, sociologia, das ciências políticas e demais saberes que se debruçam sobre o tema do bem comum, as religiões e seus saberes milenares também têm muito a contribuir com a sua preservação. A despeito das peculiaridades dogmáticas de cada confissão religiosa, é próprio das tradições de espiritualidade a fomentação de uma cultura de solidariedade. O incentivo a que se pratique o bem, a que se respeite o semelhante e a que se cuide da Terra, por exemplo, está presente em praticamente todas as grandes religiosidades. Desde os tempos mais remotos é sabido que construímos e preservamos o que temos em comum ou extinguiremos a nossa existência.
No cristianismo, por exemplo, a famosa parábola do bom samaritano, é um tratado por excelência do compromisso inescapável que os seus seguidores tem com a preservação deste solo sagrado. A história conta a compaixão praticada por um samaritano a um judeu deixado semimorto à beira do caminho depois de ter caído nas mãos de assaltantes. Aos primeiros leitores, a parábola era provocadora posto que judeus e samaritanos eram povos com profundas rivalidades religiosas, culturais e sociais entre si. A muitos, tais fatores seriam justificativas para o não engajamento de um nos dilemas do outro. Daí Jesus ter-lhes ensinado o contrário. Há coisas que nos unem que são maiores do que as que nos separam.
Longe da ingenuidade de achar que a práxis dos povos de fé é sempre coerente com seus ensinos pacificadores, a lembrança da religião como força promotora do bem comum se faz necessária justamente pelo reconhecimento de que ela não está protegida do espírito sectário do nosso tempo. É crescente - e lamentável - a constatação do uso de um tom belicoso em muitas manifestações da religião no espaço público, assim como a admissão e a normalização do uso da violência como linguagem religiosa, inclusive a serviço de projetos políticos.
Justamente por isso, é necessário nos lembrarmos mutuamente da existência deste solo sagrado sem o qual não sobrevivemos. O papel das religiões passa por preservá-lo; sobretudo em tempos tão desafiadores como o nosso. As estradas - cuja construção e manutenção resultam do nosso esforço coletivo - formam o pavimento sobre o qual transitamos. Nelas, cada um tem direito ao seu próprio caminho. Sejam quais forem, no entanto, nenhum se faz sem a lembrança de que, cedo ou tarde, a negligência à promoção do bem comum minará a nossa existência.
Daniel Guanaes - Teólogo e Psicólogo. PhD em Teologia pelo Departamento de Teologia, Filosofia e História da Universidade de Aberdeen, na Escócia. Pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio - RJ.