ASSINE
search button

Delegado: só dava para ver 1/4 do banheiro por causa dos corpos

Compartilhar

Nascido em Santa Maria, filho de um delegado de polícia e uma professora da rede estadual, Marcelo Arigony, agora no mesmo papel que viu seu pai desempenhar ao longo da vida, enfrenta o maior desafios de sua carreira: elucidar as circunstâncias e apontar os responsáveis pelo incêndio ocorrido na Boate Kiss, onde mais de 230 pessoas morreram no domingo.

Para desempenhar sua tarefa, ele usará da toda experiência adquirida no comando de 21 delegados e 200 policiais na condução da Delegacia Regional de Santa Maria. Ele entrou na polícia em 1997 e desde então atuou em diversas cidades, inclusive na capital gaúcha.

De fala rápida, sucinta e cautelosa, Arigony diz que se sente na obrigação de trazer uma resposta para a cidade onde praticamente todos conhecem alguma vítima do trágico incêndio da Kiss. Confira alguns trechos da entrevista concedida com exclusividade ao Terra.

Terra: Sua filha fez aniversário no final de semana em que aconteceu a tragédia na Boate Kiss?

Marcelo Arigony: Ela fez 18 anos na quinta-feira, nós fizemos uma festa na sexta, e depois elas foram para o Absinto (boate local de propriedade de um dos donos da Kiss), todas as amigas, com uma lista lá. Se essa festa tivesse sido sábado, tinha sido ali (na Kiss), porque só abre ali naquele dia, teria sido... graças a Deus, não ocorreu problema nenhum. Nenhum dos colegas dela faleceu, porque estavam todos de ressaca do dia anterior.

Terra: A que horas o senhor ficou sabendo do incêndio na Kiss?

Arigony: Fiquei sabendo por volta das 4h. A primeira pessoa com a qual eu fiquei preocupado foi a minha filha, embora soubesse que ela não estava lá porque estava pousando (dormindo) com os meus pais. Eu liguei, ela confirmou e disse: "a Sabrina estava lá", nossa prima, daí eu já pensei o pior.

Logo depois, comuniquei a chefia e fui até o local. Quando eu cheguei lá, os bombeiros ainda estavam trabalhando. Eu entrei, não carreguei ninguém, mas os corpos estavam todos por lá. Logo na sequência, achamos que eram poucos corpos - 20, depois 40, e quando eu cheguei ao banheiro, eu vi. Não dava para passar. Só dava para ver um quarto do banheiro por causa dos corpos, por isso, fizemos uma estimativa inicial de 50 corpos. Eu vi os corpos e não consegui passar, não cheguei a ver o resto, não dava para respirar muito. Eu ia, dava uma olhada, depois voltava, achava que era só ali.

Terra: Foi como em uma câmara de gás?

Arigony: Foi uma câmara de gás.

Terra: O que vocês então decidiram fazer naquele momento?

Arigony: As forças trabalharam focadas, num primeiro momento, no processo de identificação. Aquilo foi muito difícil, 230 e poucas pessoas ali. Famílias. Cada uma tinha que fazer o reconhecimento. Daí, tive a ideia de colocar todos no Centro Desportivo Municipal com a lona, que é o que dava para fazer. Precisávamos ser rápidos e liberar os corpos. Tocavam os celulares, era horrível, muito ruim, muito ruim. Um evento dessa natureza, desse tamanho, não se imagina. Ninguém imagina um negócio desses.

Terra: Depois de passar por uma experiência como essas, o senhor se sente diferente?

Arigony: A gente começa a questionar algumas coisas. Mas eu ainda não parei para pensar, porque estamos na adrenalina, tentando resolver. Eu me sinto responsável, não por ter responsabilidade no fato, mas porque sou um o coordenador e minha responsabilidade é essa, de dar resposta à sociedade, eu preciso dar uma resposta à sociedade. 

Então, a gente tá focado nisso e eu não parei ainda para pensar, nem vou parar para pensar nessa situação das mortes, da prima que eu perdi, de tudo isso que ocorreu, então nós vemos que depois, em um segundo tempo, é que nós vamos verificar essa situação. Vamos tocar, tentar resolver isso aí, depois que eu vou tirar uns dias para esfriar a cabeça.

Terra: O senhor se sente muito pressionado pela imprensa, por exemplo?

Arigony:  A imprensa... meu celular está inviabilizado, ele toca mais de 200 vezes por dia. Consegui um novo celular, mas ainda toca muito e não consigo atender, às vezes nem o chefe de polícia (Ranolfo Vieira Junior) eu consigo atender. O chefe de polícia veio aqui, nos deu todo o respaldo para trabalhar e disse que temos que fazer da forma correta.

Se quisesse que eu virasse o inquérito para um lado ou para outro, eu pediria para sair. Então, nós vamos fazer o inquérito de maneira lisa, doa a quem doer. O governador deu esse respaldo, disse que era para fazer o que tinha que fazer, tudo que precisasse, que estava à disposição, só que nós temos que apurar os fatos, e nós vamos apurar os fatos.

Terra: O senhor considera que esse é o momento mais difícil de sua carreira?

Arigony: É o maior desafio da minha carreira em razão do fator emocional das pessoas dessa cidade, com as quais nós convivemos todos os dias, que a gente conhece de uma vida. Meu pai conhece todo mundo aqui na cidade, foi delegado de polícia por 20 anos, nascido e criado aqui, nós conhecemos todo mundo e todo mundo que a gente conhece tem alguém que faleceu ou está no hospital, então a gente se sente na obrigação de dar essa resposta. Nós vamos dar uma resposta com responsabilidade, nós vamos fechar esse quadro, do qual já temos a moldura do que efetivamente aconteceu.