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Nas cinzas do carnaval

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Passados os três dias que conferem o direito de esquecer os problemas, deixados de lado, ainda que por tão breve tempo, a cidade e o país saltam agora do clima de folia para a realidade. A quarta-feira chegou para cumprir o destino de condenar o carnaval às cinzas; e abre alas para a Quaresma, que, a bem pensar, tem um sentido mais identificado com a seriedade do resto do ano; e sobre isso pretende ser uma temporada de preparação para que se reflita com atenção sobre o transcendente e tudo que pode diferir muito das desocupações momescas. Mesmo que não estejam por isso condenadas à paixão e morte, as pessoas, independentemente de convicções religiosas, são convidadas a viver um tempo em que se encaram as realidades incontornáveis. Para apenas três dias de festa - um hiato em que milhões se divertem -, o resto do ano fica escalado para o enfrentamento de crises e desafios.

Digamos, o Brasil está de volta ao real. O carnaval fez a gentileza de escondê-lo, mas sem ignorá-lo. Tanto que, mesmo depois de abandonados carros alegóricos e dispensadas as fantasias, ele vai continuar no calendário, graças ao desfile dos desafios e indagações que fez mexer com o povo e foram parte de seus enredos e improvisações. Os problemas e anseios que mostrou, e começam a se tornar mais salientes a partir desta semana; porque, como se diz, no Brasil as coisas mais importantes se recusam a acontecer antes do golpe que tira Momo do lugar.

É o caso do primeiro e grave teste enfrentado pelo governo, a proposta de reforma da Previdência, que no modelo original chegou comportando dúvidas, mas não apenas algumas. Foi o que excitou deputados e senadores, que já se dispõem a oferecer retoques em matéria que nunca desejaram tocar, por considerá-la sensível demais para a opinião pública. Coisa interessante, dizia o ex-ministro da Justiça Saulo Ramos: os parlamentares vivem anos e legislaturas inteiras passando por cima de assuntos que não tiverem guarita em suas atenções. E, se alguém toma a iniciativa, querem interferir logo, sob o pretexto de aperfeiçoá-la. Façam-se votos para que, retocando o texto, consigam torná-lo melhor, porque, de fato, a nova Previdência, tal como se apresenta, ainda confunde a sociedade, em parte por falta de uma adequada comunicação.

Como foi fácil perceber, estas e outras questões do cotidiano brasileiro estavam frequentemente expostas nas manifestações dos foliões, com a ressalva de, na maioria das vezes, serem tratadas com deboche ou ironia. Mas, o que de fato interessa, é que bastou que fossem às ruas para mostrar que o espírito carnavalesco acaba se tornando um pauteiro eficiente: denuncia coisas que precisam ser bem apuradas pelos governos e pela sociedade, dos quais reclamam devido tratamento. No ano passado, o que figurou com frequência nessa que é a principal entre as festas populares foram os escândalos da corrupção na administração pública, que ( por mera coincidência?) passaram a ser tratados com maior rigor. Neste ano, mais que as críticas aos corruptos, despontaram denúncias sobre o agravamento da violência praticada contra as mulheres, o que vem assumindo característica de praga social.

Como em carnavais passados, problemas desse tipo, quando caem da boca do povo e saltam para o asfalto; nesses dias em que os problemas não perderam a seriedade se se vestiram de alegria, é porque está na hora de reagir. Ou fazer mais do que se tem feito. Nesse sentido, será oportuno não condenar ao esquecimento coisas que o carnaval e os foliões fizeram a gentileza de mostrar, no breve desabafo que acabaram de viver.

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editorial | jb