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Maduro versus Bolsonaro

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Uma inversão de conhecida sentença do modernista português Almada Negreiros permitiria lembrar que as pessoas não sabem o bem que nos fazem, com o mal que nos querem fazer. Serviria para o presidente Maduro, da Venezuela, ao assumir um mandato considerado ilegítimo pela comunidade internacional, quando preferiu, no discurso de posse, direcionar suas críticas, em particular, ao colega brasileiro, em quem identifica um perfil fascista. Identificando em Brasília a sede de um governo com esse defeito, e a ele debitando um grave papel entre os conspiradores que desejam desestruturá-lo, o que acabou fazendo foi alçar Bolsonaro à liderança do movimento latino-americano que deseja vê-lo pelas costas, com a urgência possível. Exaltou e ampliou a importância de quem pretendeu ofender. Fosse mais cuidadoso, para diluir e enfraquecer as forças políticas e diplomáticas que se lhe opõem, acusaria a vários presidentes, porque inimigos divididos são mais fáceis de enfrentar, segundo as velhas lições napoleônicas. Faltou à sua assessoria inspiração tática para não incensar, por via indireta, o adversário próximo, quando se sabe que seus verdadeiros temores, mais distantes, devem estar em Washington, sobre a mesa de Trump.

Sentindo-se desconsiderado por não ser convidado para a posse, em Brasília, no primeiro dia do mês, o líder bolivariano passou recibo, sentiu o golpe, e acaba de conferir maior prestígio ao presidente brasileiro no clube dos demais países que acusam o regime de Caracas de estar construindo um dos maiores pesadelos humanitários da atualidade, sob o regime de opressão e força, que nada fica a dever aos defeitos que vê no estilo bolsonarista.

A acusação, como tem sido analisada, abre, com toda certeza, dois caminhos ao Palácio do Planalto. No primeiro, registra-se um desagrado pelo comentário em solenidade oficial, que, além de ofensivo, contribui para distanciar dois países que têm uma história de boas relações, mas seguramente se fragilizam com o episódio de quinta-feira. A questão seguinte é optar entre esperar que a ofensa se esvazie e perca fôlego, ou se lança mão dela, assumindo-a, para definir uma liderança junto às comunidades americanas que propugnam por uma nova Venezuela, em que a democracia possa ser reconstruída, com um governo legitimado por eleição livre, sem fraudes. O que, entretanto, não nos dispensa de estarmos descompromissados com qualquer intervencionismo por iniciativa externa. É preciso ajudar a população venezuelana a acordar do tumulto em que vive, mas sem ofender os brios de sua soberania.

Um fato agregado, que se consolidou com a posse contestada, é que o país vizinho aprofunda seu isolamento no continente, com as consequências que disso vão resultar, a começar pelo agravamento da crise social interna, sem que nela esteja ausente a escassez de recursos próprios, que independam de importação, para alimentar e assistir às populações mais carentes. Rica a Venezuela em poços de petróleo, isso acaba sendo insuficiente, quando é condenada a sanções econômicas, a fome grassando e a inflação subindo.

Os governos do Brasil, o último dos quais Maduro acusa de adotar o ideário fascista, ainda não haviam conhecido nas suas fronteiras uma situação de tal forma insustentável. Ofendido, o presidente Bolsonaro pode se ver tentado a aproveitar-se para propor nova fase de restrições a Caracas, a começar por reduzir a aceitação de suas famílias que procuram escapar da fome e da morte. Contudo, reações, se houver, nada devem ter com o sentimento humanitário, que seria a última coisa a perder. Apesar de Maduro.