ASSINE
search button

A arte de sobreviver

Compartilhar

O fato de se revelar avesso a sutilezas, estranhas ao seu estilo, não impediu que o presidente eleito insinuasse a abertura de espaço para o MDB tomar parte no governo prestes a se instalar. O assunto figurou no curso da recente reunião que teve com Michel Temer, em Brasília, a quem Bolsonaro parecia já estar falando não com o chefe do governo, mas com o presidente do partido, função na qual Temer deverá se reinvestir proximamente. Nada sugere que fosse apenas um convite gentil ou impensado, pois trata-se de um partido bem estruturado, ainda com resquícios de poder, mas, sobretudo, com larga experiência em apagar incêndios e formular composições, tarefas que podem ter utilidade para o detentor do futuro mandato. Não sendo nesse particular diferente de qualquer outro, o próximo, em determinadas circunstâncias, haverá de se socorrer de bombeiros e conversadores. Os problemas nunca faltam para convocá-los.

Em três décadas de trajetória, o MDB não alterou essa vocação. Nada mudou, além de pôr e repor a primeira letra, de acordo com as conveniências, mas protagonizando uma história em que se alternaram virtudes e vícios. O partido impôs seu modelo à política brasileira, frente a uma imensa capacidade de adaptação ao momento e ao clima. Dele já se disse, com uma pitada de ironia, parecer com gás, fluido, compressível, cujo volume é do recipiente que o contiver... Preferentemente, o MDB sempre se empenhou em ser amigo do rei, sem ter de carregar os encargos do rei. Bolsonaro pode ser a próxima Pasárgada.

A sinalização política aberta em Brasília talvez não exclua um projeto capaz de garantir maioria no Congresso Nacional, para controle ou superação de maiores atropelos, entre os quais a difícil gratuidade dos apoios, tão pleiteada pelo novo presidente. Como também pode estar sendo indicado o caminho de um necessário contraponto, para que o governo não quede totalmente dependente da bancada da direita, a ele simpática nas urnas, mas nos próximos meses condenada ao fogo inimigo, que seguramente virá das trincheiras do Partido dos Trabalhadores e seus fiéis aliados. Nessa hora, o MDB tem a seu crédito a experiência em viés de centro-direita, sabe como navegar em águas não muito bravas, atrelado às lições do velho almirantado de Tancredo, Thales e Ulysses, vitoriosos em momentos muito mais complexos, como a transição redemocratizante.

Se o essencial para o presidente que será diplomado dentro de alguns dias é evitar seu barco vogando à mercê dos ventos, outra possibilidade é que o entendimento com poderosa e experiente bancada, administrando interesses difusos, facilitará a consistência de uma base centro-direitista, contribuindo, num passo seguinte, para a fusão de legendas carentes de identidade própria. Esta é uma parte da ambicionada redução do quadro partidário, hoje fragmentado, mas permanentemente faminto. Um projeto inspirado nas ideias direitistas de quem vai assumir os lemes do país, mas dosadas no laboratório do centro, onde são controladas as grandes audácias, é o que os emedebistas podem fazer, e não regateariam em levar seus préstimos à era bolsonariana que vai começar.

O presidente Michel Temer, que não nasceu ontem, nem é navegante de primeira viagem e sabe das competências de sua legenda, deve ter sentido a insinuação aplicada por seu sucessor, e deu logo o recibo ao convidar Bolsonaro para acompanhá-lo em missão oficial no exterior.