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Falso capitão

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Se existe algo divertido nas eleições é o ato de ir votar. Onde moro, as ruas estão calmas, sem a zorra da boca de urna de uns anos atrás e a única abordagem que recebo é de gente panfletando imóveis. Recuso os papéis com um sorriso encoberto pela máscara. “Na volta eu pego”, respondo, lisonjeado por me acharem rico o suficiente para adquirir um apartamento perto do metrô, a poucos metros do parque e numa região cujo metro quadrado se valoriza. Em pé desde cedo, talvez os promotores entregassem os impressos ao primeiro infeliz a cruzar seus caminhos. Tudo bem. Por um segundo, me sinto importante e esqueço-me da incapacidade crônica dos candidatos municipais.

O dia está ensolarado. Prossigo, certo de topar com um antigo amigo do colégio. Dito e feito. Não sei seu telefone, nem onde mora. Não marcamos encontro algum, mas lá está ele, na porta da seção eleitoral, no mesmo horário de sempre: dez e meia da manhã. “E aí, Marcão, como vai essa força?”. “Cara, só aqui pra te encontrar”, ele responde, sem aparente surpresa. Mas o “cara” denuncia que se esqueceu do meu nome. Me afasto um pouco e, enquanto falamos banalidades, procuro no amigo sinais de envelhecimento. ‘Esqueceu o nome. Será Alzheimer? Não, ele é muito jovem, estudamos juntos. Só a barriga cresceu um pouco. Os cabelos mais brancos... é a idade’. Ele também parece buscar, no meu rosto, traços da passagem do tempo. ‘Ao menos eu sei como ele se chama’, conforto-me. Enquanto ele fala dos filhos, me ocorre se acertei seu nome. Coro. Ainda bem que estou de máscara. ‘Não seria Luis, Luisão?’ Do “ão” tenho certeza, ele era goleiro no time do colégio. Se errei, ele deve ter atribuído a mim um início de degeneração mental, ‘anormal para a idade’.

Só sei que o suposto Marcão catava bem e era capitão do time. No bate-papo, lembramos das mesmas pessoas, algumas situações. “E o Zé Antônio, que foi até candidato a vereador? Sabe dele?”. Respondo que não e mudo de assunto, antes de nos despedirmos e marcarmos de tomar uma cerveja qualquer dia. Talvez em 2022.

O tal Zé Antônio era o cara mais falante do colegial. Ninguém soube explicar como descolou uma vaga no time de futebol da escola. Ele era um perna de pau. Quando perdia a bola, gesticulava e gritava aos companheiros “Pega, não deixa. Marca, pô!”. À distância, via o adversário estufar nossas redes e balançava a cabeça em desaprovação pela suposta falha dos colegas.

Um dia, na fila da cantina, o Zé estava atrás de mim e outros amigos. Veio com um papo estranho, seria o novo capitão do time de futebol – ‘não era o Marcão?’ –, que era isso, aquilo, tinha ideias para ganhar o campeonato nas olimpíadas colegiais. Falava e rodeava. Quando percebemos, ele estava na frente da fila. Não tivemos tempo para o repreender e ele já pedira o lanche. Pagou, saiu de fininho e ainda se fez de capitão.

Semanas atrás visualizei, no Facebook, uma publicação na página de ex-alunos do colégio. Zé, o falso capitão, comia pastel na feira e convocava os ex-colegas para o “grande dia”. Ele se candidatara a vereador, após fracassar em 2016. Especialista em gestão pública, dizia-se a favor da dignidade, honestidade e mais algumas bobagens. Dei uma chance ao “fake” líder do time do colégio. ‘Pessoas mudam’, refleti. Cliquei num link para entender suas ideias, que se resumiam a três ou quatro frases feitas intituladas “Programa de governo”. Acima das frases, uma foto sua em que segurava um microfone. A julgar pela expressão facial, não seria estranho se bradasse algo como “Minha gente, não me deixem só”. Um arrepio me percorreu a espinha.

Do papo com o Marcão – ou Luizão – voltei para casa. Feliz pela caminhada, nem tanto pelo voto. No percurso, topei com o promotor, que me ofereceu, novamente, o folheto da melhor oportunidade imobiliária na região. Ele: “Por favor, moço, só pra me ajudar”. Peguei, satisfeito pelo “moço”. Dia seguinte, ainda eufórico dado o raro passeio em tempos de reclusão, procurei a lista de vereadores eleitos. O Zé Antônio não estava na relação e recobrei parte da esperança. Na política, um falso capitão a menos.

Ricardo A. Fernandes é publicitário, escritor e membro da União Brasileira de Escritores-SP.