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Conversas para passar boiada

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Enquanto esperamos pacientemente e com cautela as eleições americanas, pretendo conversar hoje sobre três assuntos a me incomodar há algum tempo: o meio ambiente, o acordo Mercosul-União Européia e o auxilio aos desvalidos. Interligados por ideologia inflexível e monopólio de decisões econômicas inábeis, quando não subservientes.

Em menos de dois anos nossa política de meio ambiente, incompreensível interna e repudiada externamente, resultou em prejuízos irreparáveis para nossa imagem no exterior, e pode provocar consideráveis danos econômicos para nossas exportações. Até hoje o governo brasileiro não explica os objetivos de nosso giro de 180 graus numa política que desde a Conferencia do Rio nos havia tornado um interlocutor privilegiado nos foros internacionais.

Afinal, o que perseguimos? Explorar os minérios do subsolo com a criação de várias Serras Peladas ou com a concessão da exploração predatória em acordos com empresas privadas nacionais e estrangeiras? O governo insinua, mas não explicita, como se o que pretende fosse ilícito ou pelo menos desabonador. E neste jogo, utiliza a ameaça à nossa soberania sobre a Amazônia com argumentos sovados já veiculados décadas atrás. Convenhamos: a falta de um plano econômico de conhecimento público só aumenta a desconfiança quando se ouve um bovino argumento a aproveitar a pandemia para passar a boiada. Nossa política de meio ambiente é um erro político e econômico indefensável e a continuação dela poderá nos levar a embaraços e até a conflitos diplomáticos que sempre soubemos evitar. É natural que a sociedade se preocupe e mais legítimo ainda que o Congresso Nacional exija transparência e legitimidade nas ações e sobretudo na falta delas.

Umbilicalmente atada à politica ambiental, a questão da aprovação ou não do Acordo Mercosul-União Européia tangencia o ridículo. Será ele tão favorável à nossa economia? Tenho sérias dúvidas e gostaria muito se o Congresso Nacional convocasse audiências públicas sobre o impacto de alguns de seus capítulos sobre o nosso desenvolvimento econômico. As cláusulas sobre meio ambiente devem ser examinadas com lupa. As sobre compras governamentais devem ser lidas com extrema cautela. As questões sobre propriedade industrial (patentes e sobretudo acesso a tecnologia) merecem o cuidado a se dispensar ao transporte de serpentes peçonhentas .

A sociedade não acompanha as negociações desses acordos comerciais, muito mais de proteção ao investidor estrangeiro, e não percebe os impactos catastróficos deles sobre o custo de vida, sobretudo por criar monopólios na área farmacêutica e promover bilhões de dólares de sangria a título de royalties e similares. Dentre outras mazelas ainda maiores como a perda de nossa soberania econômica.

Nossos institutos de engenharia deveriam olhar com régua de cálculo o impacto de abertura concedida no acordo sobre a vinculação de aprovação de projetos civis ou industriais à transferência estrangeira de mão de obra qualificada ou não. São absurdas as concessões feitas no Acordo com a União Europeia, e os próprios negociadores europeus ficaram perplexos com o “passeio “ deles.

Ainda assim há resistência dos agricultores, sobretudo franceses, ao acordo. Mas, acreditar que eles conseguirão se impor aos grandes interesses industriais europeus (Alemanha à frente) vai uma grande distância. Se tivéssemos uma politica externa voltada aos interesses nacionais, deveríamos colocar as cartas na mesa e - diante desta patacoada europeia - dizer-lhes estarmos prontos a renegociar o acordo. Não apenas em questões ambientais, mas em serviços, compras governamentais, propriedade industrial, soluções de controvérsias, cláusulas de escape, cotas agrícolas, subsídios, denominações geográficas de queijos franceses etc.

O acordo Mercosul-União Europeia não levou 20 anos sendo negociado - e dois meses para se concluído neste governo - porque o Itamaraty é de esquerda ou de barbudinhos ou um ninho de comunas. Não foi aceito durante 20 anos porque a economia brasileira não estava entregue a um posto Ipiranga menor que a loja de conveniências nele franqueada.

Tínhamos ministros da indústria e comércio, do planejamento e sobretudo não tinham os nossos negociadores de negociar com superiores perdidamente enamorados por uma ideologia neoliberal despudorada. Aqui e na Argentina, para completar.

E tínhamos chanceleres, na ditadura e fora dela. Chanceler não se compra no mercado das pulgas.
O Acordo Mercosul-União Europeia assustou até os Estados Unidos. Lembram? O Ministro do Comércio americano veio aqui reclamar. Com a chupeta do mamãe eu quero pendurada no tacape.

E se algum dia o acordo for ratificado - ou até antes disso - o cordão do bola preta virá em peso. Com pandemia e sem ela. A música de fundo será “a cottage for sale".

Chego ao terceiro e último ponto. A pandemia mostrou um Brasil a ser repensado. Não há mais espaço para conversa de boi dormir. Talvez nosso posto Ipiranga nos venda “um tutu de roupa velha” e nos engane até a primavera chegar. De qualquer forma, todo cidadão de bom-senso já se convenceu que a economia brasileira precisa de muito mais do que um freio de arrumação. O auxilio emergencial foi o único estimulo ao consumo das famílias no últimos anos. Em nosso boletim escolar estamos com uma coleira de zeros em educação, em saúde em direitos individuais. Agora virão os pitbulls estraçalhar a renda sofrida da classe média. A proposta administrativa apresentada ao Congresso promete o caos no serviço público brasileiro.

Voltaremos ao compadrio, às demissões sem justa causa e sem o devido processo legal. A autonomia concedida ao presidente da República para extinguir por decreto autarquias e agências reguladoras aumentará a insegurança jurídica de todos. São propostas com uma mirada neoliberal atrasada e aristocrata. Patrimonialista. Escravocrata, quase.

Certo: é abuso inaceitável salários acima do teto constitucional. Corrija-se, mas não se estigmatize o servidor público pela miséria social do Brasil. Ë injusto e covarde.

Por que o Posto Ipiranga, tão criativo para cortar descontos com despesas escolares e médicas, sobretudo de idosos aposentados, não propõe - como é de lei em todos os países membros da OCDE - que os ricos paguem impostos pelo menos equivalentes percentualmente ao que os servidores públicos pagam compulsoriamente por desconto em folha? Por que não se cobra imposto de renda dos lucros de dividendos? Por que esta fúria em taxar o consumo e deixar correr solto o imposto sobre grandes fortunas?

Adotar politica de menor injustiça social em sintonia com os princípios constitucionais exige Estadista capaz de cumprir com dignidade, coragem e determinação os dispositivos constitucionais. Na Constituição de 1988, apesar das amputações sofridas, ainda estão inscritos os direitos e deveres da cidadania. Os direitos e deveres de nossos representantes no Legislativo e no Executivo bem como os instrumentos pacíficos de oposição a ideologias contrárias ao Estado Democrático de Direito e à desigualdade social.

Fora desses parâmetros, abre-se a porta para desmandos, autoritarismo e rebeliões sociais. O desequilíbrio mental de pseudolíderes pode levar até mesmo a mais consolidada das democracias ocidentais à beira da guerra civil.