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Guardiões do caos

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Em outubro de 2016, Marcelo Crivella (PRB) foi eleito prefeito do Rio de Janeiro com o apoio de ampla parcela do eleitorado. Bispo evangélico e senador “ficha limpa”, Crivella parecia o bálsamo necessário para aplacar as dores causadas pelos escândalos de corrupção que abalavam os governos Dilma (federal), Cabral (estadual) e Paes (municipal).

Conciliador, em seu discurso de posse Crivella reconheceu que “ninguém vence sozinho”, agradecendo ao eleitorado pelos milhões de votos recebidos, muitos dos quais oriundos de católicos, kardecistas e povos de terreiro, então atemorizados pela possível eleição do psolista Marcelo Freixo. No mesmo discurso, reforçando os compromissos de campanha, Crivella também afirmou que jamais misturaria religião com política e que iria acabar com as filas nas emergências dos hospitais.

Prometendo “cuidar das pessoas”, foi precisamente na saúde que Crivella cometeu muitos de seus pecados capitais. O primeiro sinal de que os compromissos de campanha seriam traídos se deu numa reunião privada com aproximadamente 250 lideranças evangélicas. Nessa reunião, Crivella prometeu aos religiosos presentes que as portas dos hospitais municipais seriam abertas a todos os seus irmãos de fé que fossem indicados pela “Márcia”, uma espécie de São Pedro reformado, que teria em suas mãos as chaves da rede pública de saúde. O prefeito se referia à funcionária da Comlurb, Márcia Nunes, a quem teria concedido o poder de ligar pacientes necessitados de cirurgias de cataratas e outros cuidados aos médicos da rede municipal, furando o purgatório do SISREG, o rígido sistema que regula o atendimento hospitalar do município.

Negando esses e outros pecados mortais, como o afastamento de milhares de funcionários da rede municipal de saúde, o fechamento de vagas hospitalares e a falta de repasses às organizações sociais (OSs) que gerenciam os postos, clínica e hospitais do Rio, fato que por inúmeras vezes deixou os profissionais da saúde sem os seus salários, Crivella já havia se livrado de outras ações de impeachment. A mais notória delas ocorreu em 2019, quando a Câmara dos Vereadores rejeitou o processo aberto pelo prefeito ter, supostamente, favorecido os consórcios Adshel e Cemusa com a renovação, sem licitação, de contratos de concessão do mobiliário urbano do município.

Mas Crivella não deixou de pecar. A deterioração do sistema municipal de saúde atingiu duramente a população desassistida pela prefeitura. Desesperançados, os cariocas sobrecarregaram as já combalidas redes estadual e federal, padecendo dos males do abandono e do clientelismo abjeto, que favorece aos partidários em detrimento dos demais cidadãos.

O pandemônio causado pelo novo coronavírus só agravou esse quadro infernal. Contudo, ao invés de renovar suas práticas e religar-se aos compromissos republicanos que permitiram sua eleição, Crivella resolveu se abraçar ao patrimonialismo religioso, convertendo funcionários não concursados da prefeitura em agentes de repressão, uma milícia “celeste” a serviço do alcaide.

Esses funcionários, denominados “Guardiões do Crivella”, são regiamente remunerados pelo poder público para constranger cidadãos insatisfeitos e ameaçar profissionais de imprensa que há muito denunciam a falência da saúde pública no município. Em um funesto regime de plantão, esses verdadeiros “Guardiões do Caos” trabalham para ocultar o abandono da saúde e da vida dos cidadãos cariocas. Agressivos, buscam vedar os olhos do público para a grave crise que, para além de muita dor e sofrimento, vem concorrendo para que a “Cidade Maravilhosa” registre milhares de óbitos somente por Covid-19.

Mas sempre é possível acreditar que a justiça divina tarda, mas não falha. No momento em que Crivella logra se livrar de mais um processo de impeachment, quiçá beneficiado pelo mandonismo e pelo patrimonialismo típicos da cultura política brasileira, tem início um longo martírio. Ao fim e ao cabo, o povo irá escolher se Crivella será acolhido no céu dos injustiçados, reeleito no pleito programado para novembro próximo, ou projetado para o inferno dos corruptos, onde deverá pagar pelos seus pecados. Afinal, a voz do povo é a voz de Deus.

Lier Pires Ferreira, PhD em Direito. Professor do Ibmec e do Cp2

Renata Medeiros, Advogada. Diretora-Executiva da CBA