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Mulheres, leiam Virginia Woolf!

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A literatura feminista, escrita por mulheres para mulheres, tomou fôlego nos últimos anos. O que antes era restrito à academia ou a algumas bolhas de profissionais ou ativistas, teve uma explosão assertiva e hoje está em praticamente todos os lugares. Vemos coletivos de jovens, clubes de leituras, cursos em instituições variadas, lendo mulheres, discutindo mulheres, divulgando mulheres. Estudo feminismo e comportamento de mulheres em grupos familiares ou de trabalho já há algum tempo e comemoro: nunca vi a literatura produzida por mulheres ocupando tanto espaço.

Toda vez que pesquiso sobre esse avanço, penso em Virginia Woolf e a importância que a obra dela teve, lá atrás, nas décadas de 20 e 30, para abrir esse caminho. Quantas reflexões, percepções e sofrimento há naquelas palavras. Quanta subjetividade em textos que ilustram de maneira tão profunda toda a opressão vivenciada por mulheres desde sempre. Por isso, fico realmente feliz quando vejo que Virginia Woolf vive, que as mulheres seguem a refletir com ela e que sua obra permanece atual, em diversos meios. O lançamento do livro “Um esboço do passado”, pela editora Nós, vem comprovar que a voz de Virginia ecoa forte em nossos ouvidos. Foi realmente um dos melhores presentes que nós, mulheres, poderíamos receber em plena pandemia.

Pode-se dizer que “Um esboço do passado” são as memórias de Virginia, a que ela começou a se dedicar depois de um comentário da sua irmã Vanessa Bell. Vanessa a alertara de que se não começasse a colocar a sua própria história no papel, logo estaria velha demais para isso. Virginia ouviu a irmã e começou a organizar suas lembranças em forma de texto, em meio ao sofrimento que carregava ao escrever a biografia de um amigo à época. “Quanto mais se entende, menos se consegue formar um todo linear”, anotara em seu diário anos antes, demonstrando toda a dificuldade que tinha para elaborar as histórias sobre ela mesma.

Conforme explica Ana Carolina Mesquita – que traduziu os diários de Virginia Woolf para o português em sua tese de douturado – na apresentação do livro, Virginia estava lendo Freud enquanto escrevia os ensaios autobiográficos que viriam a compor “Um esboço do passado”, o que a ajudou a trazer à tona reflexões sobre o homem complexo que era seu pai, com quem, no livro, admite sentir uma “profunda identificação, e que de muitas maneiras moldou a escritora que ela viria a ser”. Ou sobre a perda da mãe, aos 13 anos. Ao caminhar pelo “corredor escuro das memórias de infância”, também nas palavras de Ana Carolina Mesquita, Virginia narra os abusos que sofreu por parte do meio-irmão, questiona as exigências que ela e sua irmã sofriam da sociedade da época para que se comportassem de forma meiga, doce, suave, como era esperado de todas as mulheres – convenhamos que em pleno século 21 ainda há quem pense assim – mas também escreve passagens leves e cheias de beleza sobre a infância.

Virginia Woolf, ainda sob o impacto de Freud, enxerga a vida como algo formado por “momentos de não ser”, de mergulhos no inconsciente, mesclados com “momentos de ser”, quando o real emerge, a verdade transcende e mostra como cada uma de nós faz parte de um todo, de um mundo inteiro, que “é uma obra de arte”.

“Um esboço do passado” vem em forma de diário, com fragmentos da vida de Virginia, com data e referências ao seu momento presente. Segundo ela, escrever a data foi uma forma possível de construir as anotações; uma forma possível de incluir o presente nas suas memórias, para que ele “sirva de plataforma onde se pôr de pé”. Virginia lembra o quanto o passado é afetado pelo presente - “o que escrevo hoje não escreverei daqui a um ano”. O que Virginia Woolf não sabia era o quanto o passado e o presente dela ajudariam a mudar o futuro das mulheres no mundo. E o que era futuro para ela é o nosso presente, do qual as suas reflexões, dores e questionamentos ainda fazem parte. 

Lídice Leão é jornalista, pesquisadora e mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo.