ASSINE
search button

Tá difícil, mas ainda dá

Compartilhar

Sou uma pessoa otimista. Nas segundas de manhã programo o despertador para tocar às seis e meia. Como me levanto às sete, sobra meia hora para pensar na semana, pedir aos santos, orixás e alguns deuses do submundo – por que não? – uma forcinha. Saúde, dinheiro, vamos vencer mais esta. Desconfio que, cada um à sua maneira, busca o melhor. Mesmo aqueles de quem discordamos, por vezes com veemência.

Vejam o presidente da república, por exemplo. Seguindo à risca o roteiro da incompetência, regido pela negação à realidade, está certo de fazer o melhor para o país. Ainda que até as emas do Palácio da Alvorada fujam da cloroquina. Mas não importa. Como bom comandante, ele busca a vitória. Sua estratégia: mudar de guerra.

Estamos a caminho dos três milhões de infectados e cem mil mortos. À nossa frente, apenas os irmãos da América do Norte, país ao qual o chefe do executivo devota especial apreço. E, como ex-atleta, mantém-se competitivo. O Brasil está longe de alcançar os quase cinco milhões de infectados e mais de cento e cinquenta mil mortos daquela nação. Mas a nossa curva, ah!, essa continua ascendente. Nas últimas duas semanas, foram registrados mais de seiscentos mil novos casos de covid-19 no Brasil, mais do que o dobro dos novos casos correspondentes à quinzena anterior.

Os números não mentem: se a população brasileira representa pouco menos de três por cento dos mais de sete bilhões e meio habitantes no planeta, já temos mais de quinze por cento do total de infectados. Quase catorze por cento dos óbitos. Até, agora, a prata é nossa. O que nos falta para atingir o topo do ranking?

A depender de parte considerável da população, a chance existe, embora difícil. Isso porque nossos amigos do hemisfério norte também se esforçam para manter a dianteira. A briga é boa, e por aqui muitos fazem a sua parte: festas sem máscaras, churrascos, idas a bares por diversão, desrespeito ao vizinho. Com reais possibilidades de não serem atingidos pela doença – os quase três milhões representam menos de dois por cento dos brasileiros. É pouco, ponderam.

Teríamos uma bela história para contar. Anciões, reforçaríamos às futuras gerações nossa sobrevivência à peste num país que foi o centro da pandemia, as palavras regadas de orgulho e idolatria à estatística macabra. Falem mal, mas falem de nós! É o discurso da ignorância.

Resta a economia. Esta semana, em defesa da proposta de criação de um imposto único (CBS – Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços), Paulo Guedes se opôs à manutenção da isenção sobre livros, revistas e jornais. Se aprovada, uma alíquota de 12% do CBS será aplicada sobre a receita bruta apurada nas operações desses produtos. Questionado pelo deputado Marcelo Freixo (PSOL- RJ), o Ministro respondeu ter “...certeza que o deputado tem dinheiro para comprar livros e pagar o imposto, ele está preocupado com as classes mais baixas. Mas a população mais pobre está mais preocupada em sobreviver do que frequentar livrarias como nós. Vamos doar os livros para as pessoas mais pobres, e não isentar o deputado Marcelo Freixo”.

Penso em quais livros o Ministro pensa em doar aos “mais pobres” – tão diferentes de “nós”, frequentadores de livrarias – para, ao menos, isentá-los da ignorância? Ao negar as evidências sanitárias, desconsiderar o impacto da oneração sobre produtos que são fonte de conhecimento e ferramenta de base de educação e formação profissional, fazer vistas grossas a churrascos e festas e oferecer remédios a aves, parece haver um esforço coordenado do governo federal em alcançar os cento e cinquenta mil óbitos. Talvez, com um pouco de sorte, a gente chegue lá.

Ricardo A. Fernandes é publicitário, escritor e membro da diretoria da União Brasileira dos Escritores/SP