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O furor estranho deste olhar

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Charles Dickens certamente diria que a semana a findar- se foi a pior e a melhor delas, desde janeiro de 2019.

Em sete dias o brasileiro teve a rara oportunidade de se defrontar com o melhor de sua cidadania e com o estranho furor do olhar de seus inimigos. Melhor, porque vimos os resultados benéficos para nossos filhos e netos com a aprovação do fundo da Educação Básica. Rara também a possibilidade de vermos despidas as astúcias, as artimanhas, as hipocrisias de sentinelas eleitos para zelar pela Constituição do país e trabalhar pela implementação de princípios e propósitos nela inscritos.

Melhor das semanas, porque a união entre a sociedade e a Câmara dos Deputados realçou um dos pontos cardeais na superação de nosso despudorado desnível social e de nosso cada vez menos sustentável jogo maquiavélico de esconder em fórmulas matemáticas a mais intolerável injustiça social.

Deverá ter sido penoso para alguns de nossos servidores públicos, eleitos ou não, explicar à juventude deste país o porquê de tanto cinismo, tanta demagogia, tanto jogo de cena para destruir um trabalho de inquestionável impacto positivo na sociedade brasileira. Como, daqui para frente, acreditar na credibilidade e na boa fé dos que receberam esta vitória da sociedade brasileira com um estranho furor no olhar?

Circula entre nós outro vírus a nos poupar a vida, mas a nos corromper o caráter a ponto de não vermos a corrupção de nossas almas? Os formuladores das propostas de reforma tributária acreditam que a sociedade brasileira não veja nelas a cortina de fumaça para evitar taxar bancos a estripar a classe média brasileira com seus juros luciferinos no cartão de crédito e no cheque especial? Será que nossos dignos tributaristas acreditam que a sociedade brasileira não estará vendo a apresentação “fatiada”da reforma tributária como forma e trejeito de tornar mais complicada a compreensão do perde e ganha neste jogo de cartas marcadas?

Será que nosso ministro da Economia não sabe que a introdução de uma contribuição social tal como proposta no setor de serviços poderá inviabilizar escolas particulares ou resultar em aumentos de mensalidades escolares a sufocar tanto escolas como famílias, com impacto imprevisível sobre o setor público?

Será que o ministro não hesita em tripudiar da inteligência da sociedade brasileira - que pode não ter estudado em Chicago, mas de tanto ser roubada aprendeu a reconhecer a mão do gato - e apresentar uma nova CPMF do B como se fosse uma novidade ou um achado, sem sequer esconder seu rabo e seu rastro de imposto regressivo?

Será que a sociedade brasileira está disposta a se hipnotizar com essas pantomimas como o chantagista da esquina engana os desavisados? Seremos tão abúlicos, apesar de nossa paciência ter sido abusada e menosprezada por tanto tempo e tantas lorotas?

E a sociedade brasileira tomou conhecimento de outra faceta de nosso controvertido Ministério da Saúde. Afinal, se há uma verdade que nos foi apresentada como as tábuas de Moisés seria a alta capacidade logística do corpo técnico lá instalado. Pensávamos então que na Pandemia talvez fosse mais importante a coordenação e a distribuição de equipamentos e medicamentos por todo o Brasil.

Qual não foi a surpresa da cidadania brasileira ao descobrir pela voz da Controladoria da União que apenas um pouco menos de um terço da verba alocada para o combate à Pandemia foi efetivamente distribuída a estados e municípios. E a quem beneficiou a insistência do Ministério da Saúde em promover a cloroquina? A sociedade ofende alguém quando busca saber o porquê desta estratégia sui-generis adotada no país? Há alguma publicação acadêmica que a sustente? Ou se não há, pretendem os responsáveis pela adoção desta linha de conduta fazê-la conhecida no mundo para ser eventualmente seguida ou evitada em situações semelhantes? Quem não deve não teme.

E a estreita cooperação entre o Chanceler e o ministro da Economia? Em cavernosas confabulações entre o Brasil e os Estados Unidos, nossos dois países se associam numa arriscada proposta vital contra a China na Organização Mundial do Comércio. Mais uma vez, o Brasil se apressa em mostrar sua docilidade diante da geopolítica americana, como se fosse um Estado associado ao hegemônico.

Um espólio de guerra a render homenagens a quem sequer se toca com as reais necessidades reais de seu povo. Trump é o nosso Churchill repaginado e só nos garante sangue, suor e lágrimas. E, ainda por cima, nos faz agradecer pela gentileza da cloroquina rejeitada, pela unilateral renúncia do status de país em desenvolvimento. Pelo papelão histórico de votarmos na ONU ao lado dos Estados Unidos em causas que nos envergonham como povo e nos denigrem como nação.

Agora Trump nos envolve numa briga que nem de longe nos convém. Coisa que, para simplificar, pode render pelo menos dois frutos saborosos para a sociedade brasileira. O primeiro, será a redução das importações chinesas de nosso agronegócio (vamos perder divisas, estupidamente). O segundo, será um movimento ainda mais protecionista da União Europeia diante de nossos crescentes estoques alimentares e nossa inevitável busca de mercados alternativos.

Tudo isso para ganhar um tapinha nas costas do Trump que, aqui entre nós, nos deve achar o maior trouxa do planeta e o maior boboca do quarteirão. Só que, no sotaque da Casa Branca, os “o” viram “a”, no último qualificativo. E Araujo talvez um dia nos presenteie com um livreco sobre a “ inenarrável aliança”, com prefácio de John Bolton. Em grego, como todas as boas tragédias.

Enfim, grande semana. Que venham outras. E passem os meses. E chegue a bem-aventurada hora de apertaremos o botão da maquininha eleitoral com um pouco mais de sabedoria é um pouco menos de crendices. E de cretinices. Oxalá.

*Embaixador aposentado