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Do amor demais

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"Está fazendo um ano e meio, amor, que o nosso lar desmoronou”. Na voz de João Gilberto e acompanhamento de Stan Getz e Tom Jobim, eis aí a primeira linha de um samba dor de cotovelo de Ary Barroso, a cair como luva neste domingo em que vivemos uma "grande desilusão”.

Está fazendo um ano e meio que presenciamos o desmoronamento do nosso lar e que, quanto mais passam os dias, mais aumenta nossa desilusão. Entramos no que em bom português se chama de grande sufoco, enredados em teias de mentiras, falsidades e desilusões. Uma arte perversa de fazer tolos confundirem bons costumes e boa ordem com depravada hipocrisia cínica.

Sem terra à vista, o transatlântico Brasil, pintado de branco caiado, navega fazendo água e despeja ao mar a alegria de viver que atavicamente marcou nosso povo. A pandemia veio acrescentar neste cenário um vento desolador dos campos da morte. Mas não a responsabilizo pelo ódio que fermenta em nossos fígados. Culpo os que dela se servem. Os que vociferam imunidade diante do desespero e da desigualdade que ela esfrega em nossas consciências adormecidas. Condeno os que dela debocham por ingenuamente se sentirem abrigados na riqueza ou no poder. Ou em ambos.

Está fazendo um ano e meio, amor, em que transformamos nosso lar num bordel onde gente fina e condecorada se trata aos palavrões e aos vitupérios. E tudo passa na televisão como se estivéssemos numa pornochanchada que nos vem perturbar o sono imerecido. E a tudo assistimos com a mesma tolerância dos que acreditam que o mal não tenha cúmplices. Ou inocentes úteis.

Os sabiás e os violões desafinam seus cantos e suas cordas diante do estratagema que a cada dia, a cada hora, se insinua ora melífluo como vítima, ora ciciante como cascavel . E temos medo de, quando o transatlântico afundar, irmos alimentar os tubarões de sempre, oferecer nossas carnes a moreias e suas mandíbulas de finas agulhas a nos inocular o delírio da dor.

Na Trumpelândia assistimos um agente da lei e da ordem a esmagar, à luz do sol e em praça pública, a traqueia de um cidadão como se fosse um réptil, não um batalhador numa sociedade de descarada abundância . E a Bíblia se travestiu, no manuseio sacrílego do Grande Irmão, na apologia da servidão e do racismo. Felizmente derrotado pelas marchas dos que ainda acreditam no sonho revigorante de Martin Luther King. Na ira de Malcolm X. Na retórica, mais do que nos músculos, de Muhammad Ali.

Aqui, na proa do transatlântico, alto servidor do Estado propõe às mesmas forças da lei “atirar na cabecinha “ de quem ande por aí com um objeto que se assemelhe a um fuzil. Uma vassoura, talvez. E estamos de tal modo anestesiados que achamos tudo “um novo normal”. Até mesmo quando o mesmo servidor, em passadas simiescas, congratula o "sniper" brasileiro, exemplo de obediência indevida, que matou um “pobre diabo”.

Por inspiração do bem, nossos representantes do povo, diante da desorganização da pandemia, mas também diante da miséria de todos os tempos, propõem um auxilio emergencial de 600 reais que os donos da vida e da morte queriam limitar a 200.

Dois meses depois, quando as máquinas de nosso transatlântico sepulcral parecem adquirir um suspiro de alívio, nosso três em um, qual Janus, apresenta de um lado sua face risonha de pai da ideia e outra de Torquemada a ameaçar um singelo respiradouro com a brevidade do tempo e a necessidade de voltarmos atrás.

É para atrás que se deve andar neste projeto de desmoronamento que não ousa dizer a quem beneficia nem a quem obedece. Faz um ano e meio, amor, que cansamos de dançar um balé de escorpiões. Numa cenografia de mundo cão.

Nossa floresta queima, em dias, dimensões iguais a de nossas cidades e desnudamos ao mundo, com cinismo, uma suposta soberania a nos dar o direito de destruir o que nos comprometemos universalmente a proteger. E chamamos esquerdopatas os que se opõem à insanidade que pretendemos disfarçar como politicas de desenvolvimento.

Como Antonio Conselheiro, nosso mimetismo fanático pela Trumpelândia nos leva às manchetes dos jornais internacionais diariamente como se nossa regressão civilizatória fosse um espetáculo circense em que nos deleitamos com acrobacias e pirotecnias, em que ameaçamos o patrimônio jurídico e debochamos de nosso Estado Democrático de Direito, como se a Constituição fosse um panfleto jacobino qualquer. Ou roteiro para justificar um autoritarismo nostálgico em mentes tortuosas . Uma leitura insustentável como a ideologia que a acalenta.

Faz um ano e meio, amor, que se apagou das lousas de nossas escolas públicas a palavra educação e aprofundamos nossa ignorância larvar estimulando a instrução tingida de censura e preconceito, onde a liberdade de ouvir e ser ouvido é uma catalogada forma de insanidade.

Faz um ano e meio, amor, que nosso lar desmoronou…. Lembra? E passamos a nos estranhar.