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O país do futuro pretérito

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É percepção majoritária na sociedade brasileira que vamos mal. Independente de coloração política, os brasileiros temem com crescente preocupação os rumos do país neste tormentoso ano de 2020 que ficará na história como ano marcante, daqueles que a dividem em um antes e um depois.

2020 será lembrado como o ano da Pandemia do novo coronavírus, Peste que em pouco mais de seis meses esfarelou as certezas de um mundo que se julgava incólume às mazelas dos tempos remotos da Idade Média.

Certamente será também lembrado como o ano em que a humanidade calçou as sandálias da mais humilhante derrota do ser humano que se pintava com as cores do orgulho de mestre do mundo e senhor da natureza. Será igualmente o ano que exigiu de todos nós uma reflexão sobre a responsabilidade pelo destino de nossos filhos e sobre a sobrevivência da espécie “homo sapiens“. Um ano em que a morte nos visitou sem disfarces nem cerimônias. Em que fomos afastados como insetos incômodos e jogados em valas comuns sem prece nem lágrima.

O Brasil há de figurar nos manuais escolares e nos encontros científicos e sociais do futuro como exemplo a ser condenado. Nossa geração, principalmente a que ocupa os postos de direção econômica e política nos dias que correm será minuciosamente estudada, como hoje estudamos os Maias, os Romanos e os Gregos e nos maravilhamos diante do Moisés, de Michelangelo, na Basílica de San Pietro in Vincoli, assim como nos horrorizamos diante das carnificinas de Auschwitz ou de Treblinka em que o homem mostra toda a face de sua bestialidade e da obediência indevida.

E a Pandemia nos mostra como somos tão pouco diferentes de nossos antepassados a não ser pelas ferramentas tecnológicas de que dispomos, mas, por baixo de nossa roupagem moderna, tão primitivos, ou talvez mais, dos que andaram entre as cavernas e os animais ditos selvagens. Somos homens lobos de homens, como nos advertiu Hobbes e como nos demonstrou Freud. E nossa superioridade tão vã como nossa vã filosofia.Somos apenas mais vaidosos. Pavões a desfilar como se as estrelas refletissem em nossos corpos um palco iluminado.

Nunca se matou tanto como no século XX. Saímos de duas guerras ditas mundiais para recriar um novo mundo em que minorias se refastelam na abundância e contemplam indiferentes a mortalidade diária como se fosse da ordem e do equilíbrio darwinista. Somos, no século XXI, racistas, xenófobos, preconceituosos e predadores. Somos a Peste.

E no futuro olharão para o Brasil inevitavelmente. Temos a maior floresta tropical do mundo, o maior bioma do planeta, um subsolo de riquezas, um fundo de mar generoso. O Brasil é um luxo da geografia. Mas, a Pandemia nos escancarou o que sempre fizemos questão de fingir ignorar. Somos um país de imensa injustiça social em que o preço da arroba de vida se paga com arrogância e soberba, com discriminação e hipocrisia.

A julgar pelo que vemos neste junho de 2020 nossa imagem no futuro estará comprometida com uma história em que o civismo e a solidariedade renderam-se ao primarismo e à cupidez e em que a força esteve sempre a serviço da insensatez. Nossos pósteros logo hão de ver a insensibilidade com que se levou o povo a ignorar a ameaça mortal do vírus. Como nossas autoridades deram prioridade à busca imediata do lucro fácil ao decepar árvores centenárias de nossa floresta e de rasgar seu solo em busca de minérios e virar as costas para movimentos de preservação do meio ambiente, apesar de reiterados avisos de cientistas nacionais e internacionais.

Contribuímos para a desertificação do planeta. Rasgamos nossos compromissos internacionais sobre mudanças climáticas e ignoramos sistematicamente as advertências que nos faziam sobre a inundação de nossa costa atlântica. Empobrecemos nosso país. Nossa infância e juventude lutaram por acesso a um sistema escolar tacanho e nosso povo se tornou ainda mais discriminado e discriminatório pelo poder do dinheiro quase sempre parasitariamente apropriado.

Os historiadores estrangeiros sempre dirão que o marco inicial desta degradação histórica teria começado quando filósofos oportunistas de então convenceram o governo que a terra era plana, que a democracia era relativa, que o futuro estaria protegido pelo hegemônico, que o povo teria encontrado seu mitológico salvador, homem-Constituição do país. E que, com a proteção de Deus, a escravidão da mente, a subjugação da inteligência, a opacidade da lógica, a obstrução da sintaxe, a deformação da gramática, a involução da linguagem nos havia garantido que todos os males nos levariam à liberdade.

E, como na parábola de Graciliano Ramos, iniciamos nossa caminhada de Vidas Secas.

*Embaixador aposentado