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De que lado você está?

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Diante de tantos acontecimentos funestos e personagens sórdidos, o livro pode se tornar um refúgio. Um esconderijo no mundo duro de hoje, uma passagem para um tempo da delicadeza, conforme nomeou Chico. Quando pensamos no cenário ocupado por Bolsonaros e asseclas, até conseguimos nos proteger no bunker literário de Proust, com suas flores, memórias, obras de arte, aromas, chás e a visão inocente de mundo a partir de um menino ou pré-adolescente. Mas quando os atores do atual teatro do absurdo são meninos ou pré-adolescentes reais, mortos pelo abismo social em que são jogados, não conseguimos ficar camuflados em belos enredos. Nesses casos, nem as mais doces lembranças do tempo perdido salvam. Somos atirados com toda força nos círculos do Inferno da Comédia de Dante.

Os meninos se foram. As mães ficaram. Ao ler sobre as declarações das que se manifestaram, assistir às entrevistas, e imaginar o que dizem e o que sofrem as que não tiveram forças para declarar qualquer palavra à imprensa, penso no suplício a que são submetidas as almas que chegam ao Inferno, recebidas por demônios que mordem, empurram, torturam infinitamente os mortos danados enviados para lá.

Imagino essas mulheres no Inferno destinado a elas aqui na Terra. Na angústia aguda da perda e crônica da falta dos filhos. E, ao acompanhar essas histórias, o padecimento dessas mulheres mães, penso no quão importante é o pronunciamento, a não aceitação desses assassinatos, por parte de todas as mulheres. Feminismo é isso: direitos iguais entre mulheres e homens e, antes, direitos iguais entre todas as mulheres. Não é possível o avanço das lutas feministas enquanto uma pequena parcela de mulheres vive nos céus do Paraíso, onde estão os seres de olhares brilhantes, supostamente dotados de amor e intelecto, e a maioria não tem sequer o direito à satisfação básica de ver o filho crescer. Não, não é possível. Nem aceitável.

Assim como não é mais tolerável que mulheres não se manifestem, se posicionem, repudiem, gritem contra o lançamento de meninos ao abismo pelas forças do Estado, que deveria protegê-los. Não, feminismo não é a mulher chegar ao topo de uma grande empresa para ajudar o neoliberalismo a explorar outras mulheres – que fazem parte daquelas que estão nos círculos do Inferno, a quem serão infligidos martírios intermináveis. Feminismo é escancarar os assassinatos e torturas – o corpo de um dos meninos mortos essa semana foi encontrado com sinais de tortura – dos filhos dessas mulheres que o sistema capitalista espreme, explora.

Tenho acompanhado nas redes um movimento que cobra o posicionamento de pessoas públicas que têm se calado perante a tragédia distópica se ele alastra pelo país. Aplaudo cada passo dado dentro desse movimento. Personalidades públicas têm sim que se posicionar. Celebridades que ganham dinheiro às custas da audiência dessas mulheres mães que perdem seus filhos para o abismo em situação de total desamparo têm a obrigação de dizer se estão ao lado do poder assassino ou das mulheres que compulsoriamente ocupam a base da pirâmide social brasileira. Caso contrário, as isentas em nome de Deus, correm o risco de ocupar a entrada do Inferno de Dante, território destinado às almas covardes e ausentes, que não fizeram o Mal mas não tiveram coragem de escolher o Bem. E lá seguirem o roteiro da Comédia: serem picadas eternamente por nuvens de vespas violentas e famintas.

E você, de que lado está?

Lídice Leão é jornalista, pesquisadora e mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo.