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Frente democrática e identidade da esquerda: duas questões candentes

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Nos últimos dias, algumas iniciativas fundamentais no enfretamento à escalada autoritária de Jair Bolsonaro e seus acólitos tiveram lugar. A começar pelas posições firmes do Supremo Tribunal Federal e os diversos manifestos – Estamos Juntos, Fórum Brasileiro de Política Internacional, Somos 70% –, finalmente uma frente democrática vai se tecendo de maneira a barrar a vontade golpista dos bolsonaristas e seu fascismo tupiniquim. É triste constatar que de certo modo voltamos aos anos 1970, quando a frente democrática foi a construção estratégica que levou à derrota do regime militar. Com certeza as diversas forças políticas fizeram muitas asneiras para que chegássemos até aqui, uma vez que essa trajetória não estava de modo algum escrita nas estrelas, ao contrário do que pensam – indulgentemente – os que denunciam nossos problemas hoje como se derivassem da escravidão, do conservadorismo das elites, etc.

Sem dúvida esses fatores pesam, mas foi a condução política de forças políticas que não privilegiaram a questão democrática – nela incluída a questão republicana da lisura com a coisa pública –, em um sistema político cheio de vícios graves, o que nos jogou de volta no tempo e nos obriga hoje a defender os elementos essenciais da democracia liberal.

Essa movimentação democrática vem acontecendo basicamente à revelia dos partidos. Pela esquerda, PT e PSOL, de um lado, com seu identitarismo apolítico, PSB, PDT e Rede, de outro, querendo substituí-los como forças principais, sem, porém, programa e visão de longo prazo, com o PCdoB a meio caminho. Pela centro-direita, PSBD e DEM se convenceram da inadequação de Bolsonaro, se jogam contra ele, mas resistem a propriamente se mostrar como oposição, uma vez que apoiam na verdade as famigeradas reformas de Paulo Guedes.

Marcelo Freixo, desistindo de sua candidatura à prefeitura, parece ter acordado para a necessidade de superar o identitarismo no qual a esquerda brasileira hegemônica persevera desde os anos 1980, se bem que a forma com que lançou e tentou construir sua candidatura não se tenha posto em discussão. De qualquer forma, trata-se de um importante avanço, que abre o leque de opções estratégicas da esquerda brasileira e nos permite pensar uma maneira de fazer política diferente, rumo que, aliás, Flávio Dino também aponta. Já não era sem tempo. Sem mudar radicalmente a maneira com a qual a esquerda atua, será impossível retomar protagonismo na cena política.

Mas aqui a questão da identidade retorna. Afinal, participar de uma frente democrática demanda em parte dissolver-se no coletivo que luta pela democracia. Mas isso tem que ser apenas relativo. Na luta contra a ditadura, o PCB pagou preço alto por deixar sua identidade diluir-se nesse processo. Naquele momento, contudo, a frente democrática tinha em grande medida como motor as lutas sociais, e a maré progressista se firmou no horizonte da democratização, com uma agenda de ampliação dos direitos, de construção do SUS, da legislação trabalhista, da reforma agrária, de um desenvolvimentismo prévio, se bem que já bastante ultrapassado, a montante neoliberal que logo o derrotaria. Isso se plasmou na Constituição de 1988, tão criticada por muitos dos que hoje ardentemente a defendem, ainda que muito menos do que queríamos tenha sido contemplado, nesse documento e nas décadas seguintes. A situação atual é muito distinta e a pauta progressista no Brasil está em franca defensiva.

Com os erros e a derrota da esquerda na última década, incluindo a malfadada “nova matriz econômica” de Dilma Rousseff e sua traição às bandeiras que encampou em sua campanha à reeleição, a esquerda se desmoralizou nesse campo, como em outros. As lutas sociais entre nós também não se encontram em ascensão, desde que 2013 foi desbaratado pelas forças dominantes da esquerda e mobilizações posteriores ainda não tiveram o vigor necessário para recolocar a questão social, amplamente concebida, no centro da luta política. Se o ciclo político da democratização favorecia a esquerda e sua pauta, o que acabou inclusive por levar o PT ao poder, o atual é hegemonizado por perspectivas à direita. Para piorar as coisas, a pandemia do coronavírus complica muito a possibilidade de que se ocupem as ruas massivamente. É verdade que isso está ocorrendo de forma espetacular nos EUA, mas se lá, como aqui, as injustiças se acumulavam e se tornaram insuportáveis, a esquerda acumulava forças e vinha na ascendente na última década ao norte das Américas, ao contrário do que ocorre entre nós.

Nem por isso seria correto abrir mão de uma agenda própria e de busca-la criativamente. Tudo pela frente democrática, não há dúvida; mas é preciso ter em vista que uma agenda que dê visibilidade à esquerda e à questão social é imprescindível. Se haverá em parte um retorno às ruas, dificilmente porém da magnitude que se vê nos EUA, é preciso essencialmente que isso tenha como contraponto uma agenda que destoe do que propõem os setores – ainda neoliberais – da centro-direita que, neste momento, se colocam contra Bolsonaro. Basta ver o que pensam Armínio Fraga e Pérsio Arida (mas não André Lara Resende) para constatar que a saída para eles é livrar-se de Bolsonaro e manter a política de Guedes, de ajuste fiscal e privatista, de enxugamento do Estado, a partir de 2021. Vão na contramão, com argumentos surrados, do que se fará em todo o mundo: o rentismo não abre mão de seguir extraindo seus lucros. Desde já é preciso opor-se a isso e apresentar um programa comum democrático, social e de desenvolvimento – sem volta ao passado, inclusive com temas novos ambientais, renda mínima cidadã, etc. Trata-se de disputar as soluções para esta crise, apontando para o futuro.

Ou seja, à esquerda as tarefas que se põem são complexas. Ela não tem estado à altura do momento, por conta de suas deficiências nas últimas décadas, difíceis de superar, mas pode – deve – aprender rápido. Construir uma frente democrática, mobilizar como for possível a opinião pública popular, projetar sua identidade própria com uma agenda econômica e social que permita sua reemergência como corrente política própria. E, claro, aceitar sua pluralidade e resolver seus problemas internos. Isso afeta em particular o identitarismo do PT – reproduzido pelo PSOL – e a insistência no hegemonismo e numa espécie de política aritmética (sou maior como partido, logo tenho que ser o candidato, mesmo se se trata de uma aritmética que leva a derrotas no segundo turno, desconsiderando sobretudo questões políticas estratégicas), ao mesmo tempo que PSB, PDT e Rede deixam de lado o sectarismo reflexo que dificulta também uma reorganização desse campo. As eleições municipais talvez já estejam perdidas, mas para construir um novo ciclo será imprescindível avançar nessa direção. Quem sabe quem é e o que quer, pode e deve ser generoso politicamente. Os partidos não existem simplesmente para chegar ao poder, mas sim para fazer com sua política seja vitoriosa. Democracia e mudança social serão asseguradas e aprofundadas somente se formos capazes de reconhecer isso.

José Maurício Domingues. Professor IESP-UERJ