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A exclusão de ilicitude e a ilicitude da exclusão

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Desde o início do governo, a sociedade brasileira começou a perceber movimentos de alteração de leis de nosso Código Penal e de Processo Penal. Muitas, senão todas, na direção de um autoritarismo do Estado e de uma óbvia relativização dos direitos fundamentais pessoais e sociais inscritos na Constituição de 1988.

Bastaria recordar as estranhas figuras da exclusão de ilicitude nos casos de ações policiais ou paramilitares no combate ao banditismo, ao crime em geral e, por afinidade, aos distúrbios da ordem pública. A par destas medidas, surgiram outras, também, em boa hora atenuadas pelo Congresso Nacional, relacionadas com o direito de posse de arma e, pior, de seu porte por cidadãos comuns.

As reformas de natureza processual penal, inspiradas na Lava-Jato, ampliavam as possíveis e temidas interpretações do papel do juiz como promotor público e foram rejeitadas pelo Congresso e pela comunidade jurídica do país.

Ressalta reconhecer que as propostas acima são ilustrativas e não esgotam a pletora de diferentes investidas sobre os chamados exageros da Carta de 1988 e a suposta inocuidade do sistema judicial brasileiro no combate a duas mazelas que levaram ao poder o atual governo: a corrupção e o gigantismo do Estado, este último apontado ninho da primeira e obstáculo maior ao ingresso do país no circuito privilegiado das nações modernas.

Contra pelo menos uma dessas anomalias - corrupção - a sociedade brasileira, independentemente de classe ou coloração política, havia saído às ruas em 2013 no maior movimento de contestação política de que se tem notícia desde os tempos das marchas “com Deus e Família em 1964” ou as marchas pelas “Diretas Já”.

Curiosamente - e é fenômeno que suscita interpretações variadas de analistas políticos - o movimento de 2013 não chegou a imprimir no imaginário popular uma marca distinguível de reivindicação como a marcha contra Collor, que desembocou em impeachment.

Marcos Nobre, que reúne qualidades de fino analista político e filósofo de profundo embasamento teórico, talvez seja quem melhor nos tenha iluminado sobre as brumas de 2013 e suas consequências para os labirintos em que nos encontramos hoje.

Faço aqui uma injustiça com Marcos Nobre porque é difícil resumir um pequeno grande livro como “Choque de Democracia “ (Companhia das Letras, 2013). Aconselho que o leiam e sobre ele reflitam. Aqui farei um breve comentário.

Marcos Nobre nos mostra como o sistema político brasileiro se acomodou no que chama de imobilismo em movimento do PMBD e assinala o caráter fisiológico do partido e sua importância numérica capaz de apoiar ou não projetos em tramitação no Congresso desde os governos de Fernando Henrique e Lula em jogo de interesses e contra-interesses.

Tanto FHC quanto Lula, durante mais de 15 anos, mal ou bem conseguiram fazer passar pelo Congresso os temas de seus interesses. FHC, cuja realização inquestionável é o plano real. Lula, os projetos sociais como o Bolsa Família e o aumento da renda de uma classe que ingressou no mercado. Não cabe aqui ir mais profundo na análise dos dois governos, mas numa interpretação minha, sujeita a debate, creio que tanto PSDB quanto PT atuaram alternadamente durante 16 anos como pêndulos de uma política social-democrática em que os anos FHC privilegiaram mais o capital e os anos Lula o trabalho, sem descuidar do capital.

O fato é que o relacionamento com as forças imobilistas do Congresso se rompe com as mudanças econômicas trazidas por Dilma - com a entrada de Joaquim Levy no Ministério da Fazenda - dando início a um aprofundamento da política de austeridade fiscal que, para encurtar histórias, terminou como sabemos.

O ponto importante para o qual chama atenção Marcos Nobre é o de que no período dos governos PSDB-PT a sociedade brasileira compreendeu e vivenciou uma mudança substancial, para melhor, em sua qualidade de vida. Todos os índices sociais de saúde, educação, bem-estar e alimentação em geral aumentaram exponencialmente e foi a combinação da perda deste status, com a ojeriza ao mensalão e ao clientelismo em geral, que levaram as massas paras as ruas. A interpretação de Marcos Nobre nos mostra que, muito antes de forcas anárquicas, as manifestações públicas de 2013 condenavam o sistema político então vigente não porque quisessem destruir a democracia, mas ao contrário, aprofundá-la e continuar o desenvolvimentismo social brasileiro.

Este ponto é chave para distinguirmos o que está ocorrendo hoje com o suposto saudosismo do regime militar e com a anomia de parcelas substanciais da população.

As eleições de 2018 tiveram um desenrolar anômalo devido à impossibilidade de debates no segundo turno e elegeram um presidente da República cuja mensagem criticava o sistema político e a corrupção. Complementarmente, levantava a bandeira do progresso brasileiro sem detalhar programa econômico. Numa confessada incapacidade de lidar com temas econômicos, apresentou-nos um “Posto Ipiranga”.

Desde os primeiros discursos (?) políticos de Bolsonaro, me lembrei do mesmo receituário de Collor, da mesma histrionice de Jânio. Não eram em nada comparáveis à retórica demolidora e de boa sintaxe de Carlos Lacerda, mas havia um bafio do moralismo e patrimonialismo da velha UDN dos anos 50-64.

Talvez esses arquétipos políticos terão levado 57,8 milhões de brasileiros a votar em Bolsonaro na expectativa de ver nele o governo de salvação nacional da UDN, com a marca adicional do nacional -desenvolvimentismo militar a partir de 1964.

Ledo engano. Eleito, Bolsonaro se transformou rapidamente num símile de Jânio em que se contorcem forças inconciliáveis de cesarismo, populismo e neoliberalismo.

A opção pelo “Posto Ipiranga” mostrou-se tingida de combustível inflamável pela inexistência de desenvolvimentismo social e se revelou de uma ineficiência brutal. Decidida a reduzir os direitos sociais que lhe parecem abusivos, a política econômica alienou a classe média, estraçalhou as políticas trabalhistas e previdenciárias e moveu os índices do PIB milimetricamente.

A entrada da Pandemia veio transformar a desesperança em caos. Ideologicamente mergulhado num cipoal contraditório de ideologias e cada vez mais autocrático, o Presidente reverte ostensivamente suas propostas de campanha e expõe às intempéries, num jogo de claro-escuro, seu acentuado tropismo pelo absolutismo político revestido de maquiavelismo tropical. Aproxima-se do escaler carcomido do Centrão e nele se instala como náufrago bem vindo pelos piratas de olhos muito vivos.

Nesta semana edita a MP da exclusão de ilicitude de eventuais delitos no combate ao Covid-19. Por trás das cortinas em que os pais vigiam seus filhos, os piratas esfregam suas mãos em regozijo. Com isso, abre igualmente as portas para a administração arriscada da hidrocloroquina, cujo percentual de efeitos colaterais sérios, inclusive morte, atinge um terço dos pacientes.

O governo conta com aproximadamente um terço do eleitorado brasileiro e precisa levar em conta que seus seguidores serão os primeiros a usar a cloroquina. Um ato de fé.

A exclusão de ilicitude é em si uma ilicitude. Talvez um boomerang. Quem sabe uma conversinha ao pé do ouvido com o “Posto Ipiranga” não faria com que ele reconhecesse que uma modificação na tributação aos ricos, como se faz na OCDE, seria bem mais eficaz do que cortar salários de servidores públicos. Pode ser ?

Finalmente, uma sugestão: promova o isolamento social mais bem sustentado do planeta. Achate a curva da pandemia. A hora é de estadistas. Que tal um papo com a Angela Merckel? Talvez, o Trump nos respeite mais.

*Embaixador aposentado