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O vírus e a Constituição

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Recente pesquisa revela que 65% da população é contra a política econômica do governo. Apenas 29% consideram-na certa. A política de Guedes só é bem recebida, portanto, por número menor que a chamada "base de raiz "do presidente Bolsonaro.

Decepciona, mas não surpreende que o presidente da República reafirme sua confiança no ministro da Economia e apregoe que ao ministro cabem as decisões sobre o futuro da economia brasileira.

Repete-se erro genético do governo ao enfeixar nas mãos de indiscutível neoliberal o destino, talvez por décadas em seus desdobramentos, de uma política econômica ideológica, objeto de crescentes críticas não só por parte da inteligência econômica do país, mas também de respeitados economistas de renome internacional e de organizações como o próprio FMI.

Os ideólogos, sobretudo os neo-totalitários de esquerda ou de direita, são como bestas de antolhos que só vem o horizonte que lhes permite a doutrina ou a chibata. A questão que se coloca é de natureza mais profunda.

A política de Guedes - a bem da verdade, imposta ao Brasil nos últimos quatro anos - abriga contradição interna que a solapa e a desconstrói. Ao defender a supremacia do mercado sobre o Estado, as ações políticas necessárias para a redução do Estado só podem ser tomadas pela aquiescência do próprio Estado. Ou, então, pelo golpe antidemocrático.

Decorre daí a tensão entre os conscientes de que as medidas econômicas sugeridas por neoliberais, ou simplesmente por neogatunos, exigem uma mutilação dos direitos sociais tais como inscritos nas Constituições dos principais países europeus - Portugal à frente - e do Brasil e os que as defendem a qualquer preço.

As chamadas "reformas estruturantes”, marca de fantasia inventada por Guedes, nada mais são do que reformas escorchantes pois reduzem sem contrapartida social direitos trabalhistas, previdenciários e solapam os investimentos sociais obrigatórios do Estado na saúde e na instrução públicas.

As reformas podem confrontar o espírito e a letra da Constituição de 1988. E frequentemente o fazem. Rompem o equilíbrio entre capital, de um lado e direitos sociais e direitos trabalhistas, de outro. Abrem caminho para o precariado do trabalho e enfeitam a miséria de lantejoulas como a carteira verde-amarela. Foi neste estágio que a pandemia do covid-19 nos encontrou no Brasil.

A par das mazelas trazidas pelo vírus, o governo adotou a atitude negacionista, seguindo aí, como sempre segue, o exemplo de Donald Trump, sem perceber a monumental disparidade de poder monetário entre o presidente americano e o brasileiro. Resultado: nos dias que correm, tanto os Estados Unidos quanto o Brasil são universalmente reconhecidos como os piores países no enfrentamento do vírus. Novembro dirá se Deus é panamericano.

Como se não bastasse esta identidade negacionista, duas vertentes surgiam no Brasil: a resistência do ministro da Economia em distribuir de forma rápida e eficaz, a exemplo de todos os países do mundo, subsídios para permitir o isolamento social. Em contrapartida, tivemos o surpreendente aparecimento de um ministro da Saúde carismático e afinado com equipe competente no Ministério.

A manutenção do delírio econômico tornou imperiosa a destruição do realismo sanitário. O ministério da Saúde conhece hoje o aparelhamento criticado dos governos fisiológicos.

A interlocução entre União e entes federativos, Estados e Municípios perdeu muito de sua eficácia e agravou os índices de não-isolamento social na medida em que os recursos destinados a desempregados e desvalidos provocavam aglomerações inéditas nos guichês e portões da Caixa Econômica Federal.

Hoje, o governo corre como se tivesse atrás dele a descida do lamaçal de Brumadinho. No afã de se salvar da avalanche moral, salta de uma microcrise para outra, todas saídas da mesma fornalha, com o objetivo inconfessado, mas transparente, de salvados do incêndio.

O que importa agora é saber para onde se dirigirá a sociedade brasileira, onde investirá seu civismo, como defenderá sua democracia? A tarefa está nas mãos de todos os que zelam por liberdades e direitos que datam da Revolução Francesa e que nos querem arrebatar como se viessem de movimentos totalitários como os que restam nos escombros do muro de Berlim.

O que nos propõe o governo? Uma reforma tributária e uma reforma administrativa. Comecemos por esta última. Com a pandemia, parte dela migrou para a PEC de auxílio aos estados e municípios pela União. Guedes coloca como pré-condição a redução dos salários dos servidores públicos. O Congresso contrapõe congelamento de aumentos de salários durante dezoito meses. Guedes argumenta que o não aumento do funcionalismo pode resultar numa economia de 150 bilhões de reais.

Admitamos que os cálculos estejam corretos. Por que o iluminado ministro não inclui também um apêndice da reforma tributária e, como fazem membros da OCDE, taxa as grandes fortunas, os lucros de dividendos e reduz a carga tributária do imposto sobre o consumo? Quanto se apuraria ? Provavelmente, outros R$ 150 bilhões. É um orçamento de paz, no montante de R$ 300 bilhões para uma reconstrução que já está no radar de setores menos ideologizados do poder Executivo.

Só almas empedernidas podem desejar que depois da revelação do imenso desnível social neste país, as reformas econômicas sigam o ridículo caminho de nos enfeitiçar com a chegada mirabolante de milhões de dólares em investimentos estrangeiros.

Esta cantilena soporífera quer nos transformar num país aberto à pirataria 4.0, ao extrativismo mineral nas reservas indígenas, saudar nossa imensa vitória tecnológica em termos regredido à honrosa posição de exportadora de produtos primários. Em termos reduzido nossa indústria a migalhas, que perdeu espaço e continuará perdendo com uma política insana de abertura comercial unilateral e de acordos comerciais desequilibrados.

O Brasil merece destino maior. E o destino do país está entrelaçado para o bem ou para mal com o de seu povo. Não há como separar um do outro.

Adhemar Bahadian é embaixador aposentado