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Os números não morrem, quem morre são as pessoas

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A morte em tempos de pandemia não tem nome. É um número nas estatísticas sobre o Covid-19. Mesmo quando estamos diante de imagens como as de pessoas com trajes especiais a enterrar caixões em valas comuns, na cidade de Nova York, não acessamos as vítimas que morreram por conta do coronavírus: em Hart Island os corpos sepultados não tinham identidade; foram registrados com códigos numéricos. A operação foi gravada por um drone e tornou pública a existência de uma região usada há mais de 150 anos por autoridades para enterros de corpos cujas famílias abandonaram ou não tinham condições de arcar com os custos de um enterro.

A invisibilidade das pessoas dos caixões que baixavam nas imensas covas coletivas reproduzia a cena de destino dos judeus assassinados em Auschwitz, que também foram despossuídos de seus nomes para que, não sendo identificados, deixassem de existir e não pudessem ser chorados. As cenas dos caixões lacrados em Nova York e em outras regiões durante essa pandemia apenas servem como pano de fundo do grande quadro que apresenta as estatísticas de mortalidade do Sars-Cov-2. E não somos afetados ou sentimos dor pela morte desses números.

A imagem da dor que nos atravessa ocupa um lugar muito singular nas diferentes formas de existência contemporâneas. Não por acaso, quando dizemos que a dor “é inimaginável” estamos lidando e tentando representar, pela limitação das palavras, a intensidade desmedida da dor que a morte do outro nos provoca, como se morresse algo em nós também. Portanto, para que a dor se torne uma imagem para nossa sensibilidade e abra espaço para que faça parte de um processo de travessia, de ressignificações, de narrativas, de histórias é necessário que nos identifiquemos com ela, é importante que seja como um espelho.

Enquanto imagem em nós, a dor se torna algo que devemos atravessar de um ponto a outro. Concepção contrária à sensibilidade contemporânea, que entende dor e sofrimento como doença, erro, acidente ou crime. Algo a ser negado. Algo a ser corrigido. Algo a ser evitado. Algo que produz medo. De forma que esse medo facilite o processo de governo dos afetos a partir da administração “política” das imagens relacionadas a ela, à dor. Os trabalhos de Bertolt Brecht, Walter Benjamin, Susan Sontag e Georges Didi-Huberman, para dizer alguns nomes de intelectuais que se debruçaram sobre essa questão, ensinam que o objeto de uma poética das imagens é, inevitavelmente, um trabalho de pedagogia.

“A imagem tem sua força drenada pela maneira como é usada, pelos lugares onde é vista e pela frequência com que é vista” , escreveu Susan Sontag. Essa sentença não poderia ser mais certeira para analisarmos o modo como os números das mortes nessa pandemia têm sido utilizados para sustentar uma imagem que reproduz uma invisibilidade, uma imagem capaz de negar a gravidade e a dor provocada pelas mortes apresentadas nas curvas estatísticas.

Os números não morrem, só as pessoas morrem. Entretanto, a imagem da dor pela morte dessas pessoas tem sido produzida de modo que não nos afete. Não nos afeta porque é ironizada de forma cínica por quem não percebe que também está diante da morte ou está esgotado demais para registrar o próprio sofrimento. É preciso, portanto, que produzamos outras imagens, que façamos existir tudo o que a negação da realidade tem impedido de acessar. Essas imagens certamente serão uma ponte sensível, uma ancoragem entre o pensamento, o conhecimento e a ação política.

Aluísio Ferreira de Lima é psicólogo, doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará.