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O que fazer, sem a saída de Pampinéia?

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Num clássico da literatura universal (“Decamerão”), Giovanni Boccaccio narra os acontecimentos que sobrevieram à cidade de Florença, no ano de 1348. A altamente contagiosa e mortífera peste bubônica, doença que, no ocidente, provocava o surgimento de bubões (ou “inchaços”) nas axilas ou na virilha (em seguida, a doença passou a se manifestar através de manchas escuras ou lívidas na pele), surgira no oriente, onde deixara um rastro de mortes e, tal como a atual pandemia do Covid-19, também não se conhecia nenhum fármaco que a pudesse deter. “Assim como era certo que poucos se curavam, também é certo que, ao contrário desses, quase todos, após o terceiro dia do surgimento dos sinais referidos acima, faleciam” (Decamerão).

Sem o conhecimento acerca da natureza de que dispomos sete séculos depois, aquela mortandade era atribuída a uma iniciativa dos corpos superiores, que, para punir as iniquidades humanas, lançara sobre os mortais a justa cólera divina. Por sua vez, é fato que, além de um grau de letalidade menor, a capacidade de conhecer que dispomos hoje impugna qualquer explicação do problema que não seja imanente, causal – ou seja, o “castigo” não vem dos céus!

Embora se imponha como universalmente válido, o que tem chamado a atenção diante do combate à enfermidade do Coronavírus é o postergar do conhecimento científico. O ceticismo quanto aos riscos e às recomendações da imensa maioria das autoridades médicas, mesmo diante das evidências, parte daqueles que deveriam ser os principais combatentes: o governo central. De tanto se desdenhar do vírus e de se censurar as medidas para evitar o contágio, abriu-se uma disputa na sociedade. Ao invés de estarmos concentrados no exame dos dados que exprimem a evolução da doença, tratando da falta de equipamentos hospitalares (de EPIs para profissionais a respiradores) e da dependência da produção estrangeira nesse quesito (como, p. ex., custo decorrente da alta do dólar), estamos a lidar com uma disputa ensandecida acerca do melhor tratamento (quando não “cura”), com a inoperância e com um discurso a apavorar os implicados por uma economia cada vez mais informal e vulnerabilizada pelas necessárias medidas de contenção.

Além da exposição negativa internacional, a situação ganhou o inacreditável capítulo da demissão do ministro da saúde. Causa espécie que o seu afastamento ocorreu não por ineficiência na condução da crise, mas por ele se recusar a curvar-se diante de uma autoridade que não a científica. Como se não bastasse, carreatas pedindo o fim da quarentena e atos clamando por um novo AI-5 no último final de semana tiveram a inefável presença do presidente, que não desperdiçou a ocasião para mandar um recado aos poderes que impõem óbices aos seus intentos: “Nós não queremos negociar nada!”.

Voltemos a 1348. Diante daquela calamidade (inclusive com a decomposição das autoridades), sete moças encontraram-se reunidas na igreja. A mais velha delas, Pampinéia, pôs-se a falar: “Com justiça maior, e sem ofender a quem quer que seja, cabe-nos, a nós, assim como a quaisquer outras pessoas honestas, o direito de adotarmos as providências que estiverem ao nosso alcance para a preservação de nossa existência”. A solução indicada por Pampinéia, e acatada pelas demais, foi a de exilar-se fora da cidade (ponto de onde, aliás, têm início as novelas de Boccaccio). De volta ao Brasil, e diante da impossibilidade de seguirmos a saída de Pampinéia, resta-nos saber como, em nossas circunstâncias, podemos reagir e levar a efeito a “preservação de nossa existência”.

Rogério Castro é professor universitário e doutor em Serviço Social/UFRJ. Atualmente, encontra-se vinculado ao Mestrado Acadêmico em Serviço Social da UECE; também é jornalista profissional.