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Mentes despenteadas

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Os tristes, penosos acontecimentos desta semana nos levam todos a uma grave constatação: estamos a nos transformar numa nação decaída. Por mais argutos que sejam nossos analistas políticos, a multiplicidade de imprevidências tornam temerário qualquer prognóstico que não seja meramente especulativo.

Há deliberada intenção de confundir nossas mentes e de retardar nossas reações cívicas. Somos um país cindido e desconfiado. E nossas mais elementares expectativas de vivermos numa terra abençoada por inúmeras dádivas da natureza se frustam e empobrecemos todos moral e economicamente.

Autoridades eleitas pelo voto democrático se entre-devoram sob o comando do ódio e da mais impensável distância entre o projeto civilizatório e a barbárie.

Ao se abater sobre nós a pandemia, esperávamos ingenuamente, talvez, mas amparados na crença de sermos país povoado por um povo solidário, que nosso governo - a quem cabe por mandato popular e ordem constitucional zelar por nossa segurança e bem-estar - tomaria desde as primeiras horas as medidas que se impõem nas grandes tragédias nacionais.

Já vínhamos, faz alguns anos, engabelados por um cântico de sereias- moreias a prometer por reformas espetaculosas nos encaminhar para o verdadeiro “lugar que nos compete”. Na realidade, fomos alimentados com o alpiste da ilusão e mágicos de números complexos nos asseguravam o futuro próximo redentor. Nada ocorreu, a não ser o crescimento da pobreza, do desemprego e da recaída de milhões na miséria.

Sem alternativas, transportamos ilusões de dia para noites, pagamos dízimos a profetas de um deus de ódio e acreditamos que um mito baixado dos céus há de nos guiar das trevas para a luz.

E se abate sobre nós a fúria da pandemia. Embora tivéssemos tido a felicidade de vê-la pelo horizonte de países amigos e distantes, aqui, quando aportou, recebeu de imediato o escárnio sacrílego dos que, mitômanos por natureza, a desafiaram e, ao fazê-lo, contribuíram para sua disseminação entre nosso povo. Bastaria isso para nos acordar e nos fazer ver a dimensão de nossa ingenuidade, a profundidade de nossa ignorância.

Assistimos nossos líderes promover aglomerações sociais catastróficas mesmo quando procuravam aliviar a penúria dos mais pobres, levando-os a intermináveis filas diante de bancos num ritual diabólico da mais espúria incompetência administrativa. Nosso mágico dos números complexos, revoltado com o que considera a destruição de seu projeto renascentista, procura dar no papel o que não se materializa no bolso dos famélicos.

E nem bem uma lua havia iluminado nossas noites quando começaram a escassear em nossos hospitais públicos leitos e equipamentos para salvaguardar nossos infectados. Quase quatro anos de uma política econômica desavergonhada que não recua diante do corte de verbas destinadas ao amparo infantil e à educação da juventude potencializava os complexos números de nossos czares e revelava em sua mais completa indecência um genocídio homeopático.

Anos de ingênua estupidez diante de uma globalização predatória e de um capitalismo rentista, acolitado por um festival pirotécnico de juros estelares, destruíram nossa indústria e nos fizeram dependentes de máscaras, medicamentos e roupas para nossos médicos e profissionais da saúde. Países que nos prometeram a solidariedade inquestionável de seu poder financeiro foram os primeiros a nos mostrar a cupidez e a rapacidade de suas amizades. E o líder, a se julgar o comensal preferido de seu ídolo todo poderoso, conheceu de perto o sabor selvagem da antropofagia.

Só nos restava o isolamento social. Tivemos a ventura de ver surgir um ministro da Saúde inesperado, uma espécie de penetra na caverna de ali-babá, que nos ensinou o caminho da proteção. E nos convenceu sem mágicas, mas em nome da boa medicina. Durou pouco. Seu crescimento popular provocou no ego do líder o vírus sempre presente da vaidade e em poucos dias teceu-lhe a armadilha da difamação e do desrespeito hipotético à autoridade.

Pior. Acossado por fantasmas saídos das cavernas de uma alma torcida, o líder, qual Átila, rei dos hunos, montou em seu cavalo Othar e saiu a pisotear toda a grama por onde passava. E conspirações foram estimuladas, suspeitas infundadas lançadas contra legisladores e juízes. O Caos.

Neste apocalipse da irracionalidade, surge discreta e quase taciturna uma proposta a acender em todos uma esperança fugidia. Uma proposta Roosevelt- Keynnesiana de investir maciçamente em infraestrutura, dar emprego a milhões e sem dúvida aumentar a renda nacional. Mas, logo-logo nosso czar dos números complexos se mostra descoroçoado, desautorizado. Em questão de horas, comentaristas econômicos do neo-liberalismo pandêmico levantam suas vozes críticas e contrafeitas. Insistem que a retomada das reformas escorchantes, ceifadoras de salários, devem sempre nortear nosso devir. E tentam matar a porretadas, como caçadores de filhotes de focas, a ideia e suas virtudes.

O silêncio dos economistas progressistas me parece ensurdecedor. O jogo político da dizimação se aprofunda e busca nos desviar da pandemia e da miséria.

Mentes despenteadas navegam o Brasil na rota de seu iceberg.

*Embaixador aposentado