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Todas as vidas valem

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Uma crise como a que vivemos não deixa de estar carregada de ensinamentos. E ensinamentos sempre acrescentam, somam, agregam conhecimento e sabedoria, fazendo-nos ser mais humanos. Nem todas essas lições que a crise nos dá são positivas, ensinam como fazer, mostram o caminho que temos à frente. Algumas são negativas, apontam para o que não deve ser feito nem imitado sob hipótese alguma, mostrando-nos o que evitar para seguir caminhando. Entre estas últimas certamente está a questão dos idosos em meio à pandemia do novo coronavírus.

Chega a ser chocante, para não dizer repulsiva, a atitude de governantes, empresários, médicos, ministros, quando se referem à maior vulnerabilidade das pessoas de mais idade e, portanto, a sua maior chance de letalidade. Esses idosos não entram em consideração quando se trata de levar adiante o isolamento social ou são objeto de descarte quando se fala da estrutura sanitária chegar ao limite para receber todos os pacientes. É uma postura de desprezo revestido de fatalismo, mas que em verdade esconde uma concepção lamentável do que seja o ser humano e a vida humana como dom precioso que deve ser cuidada desveladamente em todos os seus estágios.

É curioso que alguns desses mesmos que vociferam em favor de uma abertura irrestrita da quarentena já e imediatamente são os mesmos que clamam aos céus contra a interrupção da gravidez. Quando se trata da concepção e do início da vida essas pessoas ou grupos são enfáticos em defendê-la e por ela lutar. Por que então não mantêm a mesma coerência e ardor quando se trata da maturidade da vida, em sua etapa conclusiva?

A explicação não é tão complicada. O próprio Papa Francisco já decifrou magistralmente a resposta em sua Exortação Apostólica “ Gaudete et Exsultate”, de 2018, sobre a santidade no mundo de hoje. No número 101 deste documento, o Papa reflete sobre como o cristão deve buscar a santidade praticando as obras de misericórdia corporais e espirituais. Observa, porém, que o evangelho de Mateus, que propõe ao crente a contemplação do Juízo Final, só menciona as corporais: dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir o nu etc.

Não quer dizer que o Papa não dê importância às obras de misericórdia espirituais. Pelo contrário. Uma e outra vez ao longo do documento, o pontífice exorta à paciência, ao cuidado espiritual com o próximo e tudo que constitui a atenção misericordiosa subjetiva e caridosa. Quer deixar bem claro que sem a atenção às necessidades básicas e, portanto, corporais dos pobres e desvalidos da terra, não haverá santidade possível. Pelo menos o que se entende como santidade dentro do Cristianismo.

Com sua habitual lucidez, o Papa explica que todas as vidas valem. E têm valor infinito. Não apenas a do nascituro indefeso, que não pode sequer gritar para defender-se. Não só as “produtivas”, que podem trabalhar em tempo integral e produzir dividendos para o mercado. Nem apenas os fortes, as vigorosas e belas, no ápice da existência ou mesmo em suas etapas iniciais. E valem muito. Portanto, a luta contra a pandemia é por cada uma delas, uma a uma.

Todas as mortes ocorridas ou por ocorrer nos diminuem como humanidade. E não à toa lembra o Papa que entre essas vidas que valem infinitamente estão as dos “idosos privados de cuidados” ou mesmo atirados ao contágio, sob pretexto de que suas vidas são descartáveis e dispensáveis.

Em defesa das vidas dos idosos e anciãos, podemos mencionar, além do Evangelho, do magistério de Francisco e de toda a tradição da Igreja, fontes tradicionais não cristãs. Todas as tradições dos povos originários, todas as religiões têm enorme respeito pelos anciãos e por tudo que os mesmos representam em termos de sabedoria, capacidade de conselho, densidade identitária do grupo humano. Os idosos são venerados por toda parte. São a sede da memória de uma cultura, de uma tradição, de uma religião.

Trata-se aqui das vidas de todos. É fundamental se buscar salvá-las com todos os meios ao alcance. E entre estas contam-se também e plenamente as dos idosos. Todas as vidas valem. Igualmente as vidas que transcorrem há mais tempo, que formaram as jovens vidas que hoje são o futuro da humanidade. Quem com essa ligeireza considera a possibilidade de assassinar seu passado, mostra-se indigno do presente e também do futuro. Esperemos que a pandemia, além de todos os sofrimentos que já trouxe, não deixe esse amargo legado.

A teóloga Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de “Santidade, chamado à humanidade” (Editora Paulinas), entre outros livros.