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Pandemia e inconsciência social

Marcos Corrêa/PR -
Jair Bolsonaro
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O presidente atravessou seu Rubicão. Poderá ter o destino de Napoleão que perdeu a campanha diante do General Inverno na Rússia e acabou na Ilha de Elba. Poderá ter o destino de Hitler, que tentando mostrar-se mais arguto que Napoleão cometeu o mesmo erro e invadiu a URSS de Stalin para ser parado em Leningrado pelo mesmo inverno. Finalmente, poderá imaginar-se vitorioso como Cesar e cantar o “vim, vi e venci”.

Em defesa de sua postura, argumenta como os grandes generais: é melhor uma decisão errada do que nenhuma. Me lembrei, mais uma vez de Cesar: “Ave César, os que vão morrer te saúdam“.

O presidente, talvez sem disso se dar conta, comete o erro de Napoleão e de Hitler. O erro estratégico a que nenhum vencedor pode se permitir: o de subestimar o poderio do adversário e ao mesmo tempo sobrestimar o poder de suas tropas.

Se o inimigo oculto tanto de Napoleão quanto de Hitler foi o inverno, o inimigo ostensivo do Brasil é a Pandemia e seu inimigo oculto a injustiça social.

Como Hitler, o presidente acredita na sua "panzerdivision", que ficou grimpada nas neves de Leningrado. E acredita também que a ideologia neoliberal e Paulo Guedes estavam a ponto de fazer o Brasil decolar quando surgiu o inimigo ostensivo, Pandemia.

Desperto de um sonho de mil e uma glórias e vendo trincada sua bola de cristal, o presidente, acolitado por seu general Paulo Guedes, convence-se de que pode abrir fogo contra dois inimigos ao mesmo tempo, a Pandemia e sua legião de miseráveis sem lenço nem documento. Nem CPF.

Não se pode atribuir a Sua Excelência a existência da injustiça social. Mas, pode-se identificar na ideologia neoliberal, mimada desde os anos 70 e agora agasalhada em manta funérea, como a ideologia responsável pelo enfraquecimento do Estado e pelo aprofundamento do desnível social.

Declarando-se publicamente jejuno nas artimanhas da economia, Sua Excelência entrega seu comando ao general Guedes e lhe confia os poderes das Finanças, do Comércio e do Planejamento da nação. Conta ainda, suprema vantagem política, com o apoio irredutível do Czar Trump, senhor do Império e condutor do destino manifesto.

Espalha-se a Pandemia pelos quatro continentes e, diante da soberba do Império, ceifa o orgulho de Trump e o desfila nu pelas praças dos mercados a mendigar e a extorquir os insumos para salvar a mortandade de seus súditos. Ao impedir que o Brasil adquira os mesmos insumos ainda que em quantidades mínimas, o Imperador manda o centurião tranquilizar o aliado privilegiado: “tão logo eu vire a esquina, olharei para você.” E Guedes, tão favorável à aliança indestrutível com o Império, se cala diante da realidade sulfúrica do neo-realismo político, irmão xifópago do neoliberalismo econômico.

A política externa, tão arrogante quanto caudatária da panzerdivision de Guedes se encontra sem atalhos e sem aliados no labirinto de suas ridículas teorias de um novo mundo guiado por Trump. Há quem dela ria, há quem dela deboche. De sua empáfia, de sua tentativa de transformar a selva amazônica na pira sagrada da terra devoluta. De sua insanidade de transformar o Brasil num país-pária. De aceitar, singelamente, o que historicamente sempre repudiamos, a vassalagem ao Império.

E nesta hora, a Pandemia começa a mostrar suas garras. Hospitais perdem a cada dia sua capacidade de albergar os desvalidos e os próprios médicos, sem proteção adequada, pagam com doença e talvez morte, o indecoroso servilismo a uma globalização que nos roubou tudo, inclusive a dignidade.

Diante de caminhos fechados, em que a única saída universalmente aceita é o distanciamento social e a derrama de apoio monetário a fundo perdido pelos cofres das nações, a reação dos poderosos exige a abertura de todos os portos e cancelas, a retomada pura e simples do irracionalismo do "seja o que o destino quiser”. E que se percam os dedos, desde que fiquem os anéis .

Mas, o tempo das fadas se esvaiu e o das bruxas se apresenta com o vigor putrefato dos morticínios. Seria o momento do Estadista. Seria o momento do "mea culpa" coletivo e do esforço Roosevelt-Kennesiano a buscar o caminho da reconstrução. Ao invés, apenas se reforça a ideia que devemos retomar as reformas neoliberalizantes, reduzir salários da classe média, vender as empresas públicas, reduzir a pó nossas reservas internacionais. No Coliseu, a turba ensandecida abraça o ódio.

Pouco a pouco, mas ainda insuficientes, vozes da sensatez batem panelas e desta forma pretendem afastar os maus espíritos. Mas, a terra ainda está quente e dividida pela animosidade que se estrumou como se fosse o tapete mágico da salvação. E o vento da pandemia nos avisa ser o tempo da morte.

Multidões se aglomeram às portas dos cofres públicos que se demoram a abrir por esta ou aquela firula burocrática, as doações são prometidas, mas não chegam aos bolsos dos desesperançados.

O pavor da fome atiça o destemor de ir às ruas, indiferente ao risco da morte, principalmente porque vozes supostamente sábias minimizam o risco e até a ele se expõem confundindo coragem com imprevidência. Em nome de quê?

Mais uma vez, os antônios conselheiros renascem tangidos por fé ou malícia irracionais e embaralham o que é de César com o que é de Deus.

E surge no horizonte a imagem patética de Napoleão.

*Embaixador aposentado