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Estado sitiado

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Nós brasileiros sempre tivemos acentuada inclinação por eleger como presidente da República projeções delirantes de nossas fantasias onipotentes. Para não ir mais longe em nossa história, bastaria lembrar as trajetórias de Jânio Quadros, Fernando Collor e, agora, Jair Bolsonaro. Os três com uma tendência particular para o radicalismo. Jânio com uma vassoura. Collor com uma bala de prata. Bolsonaro com o gestual de uma metralhadora. Os três, em comum, com clara alergia ao Congresso.

Nossa sociedade não elege indivíduos, mas salvadores da pátria, supostamente investidos de poderes extra-humanos. De certa forma, o procedimento é cômodo porque nos alivia do esforço racional de buscarmos representantes que aceitem discutir ideias e programas. Preferimos confiar em promessas, visões do paraíso e cantos marciais de grandeza próxima ou futura.

Deixo a historiadores e a sociólogos a tarefa maior de explicar as raízes de nosso comportamento. Me detenho em alguns aspectos evidentes e que, mais uma vez, como aconteceu com Jânio e Collor, nos aproximam perigosamente de rupturas institucionais graves a ameaçar o Estado democrático de direito pelo golpe usual, cegamente autoritário e economicamente servil.

Provavelmente, a sociedade contemporânea apenas repita comportamentos de nossa cidadania, sempre no muro dos acontecimentos históricos, seja na Independência seja na proclamação da República. Movimentos conduzidos por elites patrimonialistas e estamentos militares.

Contribui para esta anomia a convicção, imposta a nós desde a carta de Caminha, de que habitamos uma terra onde “nela se plantando tudo dá”. Por uma literatura grandiloquente dos “pássaros que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá” e de uma visão mágica do mundo em que se nacionaliza a divindade: “Deus é brasileiro”.

Num país destes, trabalhar para quê? Precisamos apenas de um "chef de cuisine“ que saiba combinar os temperos para que nos possamos refastelar no ócio com dignidade ou mesmo sem ela. E nesta toada nos deixamos velejar com piratas engravatados, vendedores de carros usados que nos legam um país a construir.

Lamentável a combinação espúria entre piratas e Calabares. Estamos hoje numa sociedade dividida pelo ódio irracional e pela compreensiva e crescente intolerância diante de ideologias que aprofundam os impasses civilizacionais. Para completar, diante de um morticínio anunciado, trazido por uma pandemia a escancarar diante de nós a miséria econômica e moral.

Em ritmo de marcha fúnebre, assistimos a falência sistêmica de um mundo globalizado pela financeirização predatória, pelo aniquilamento dos Estados-Nações e pela exteriorização das vísceras de um sistema internacional de comércio sustentado em “cadeias integradas de valor”, que mostram sua real face oligopolista a deixar nossos hospitais desprovidos dos mais simples instrumentos de combate à proliferação virótica. Morre-se em nome da suposta liberalização do comércio, do livre trânsito de mercadorias e da livre transferência de fluxos financeiros. Este, o mundo que criamos e que enfiamos goela abaixo dos famintos e dos famélicos, dos sem-teto e dos sem-terra. Uma massa humana assustadora com olhos injetados de sangue.

Hoje, o Brasil é um país-pária. As últimas declarações sobre a pandemia nos colocam na fronteira entre o delírio e a desfaçatez. Nossa política externa, dócil e virginalmente cedeu a promessas de conúbio com os poderosos e mafiosos, e volta para sua toca com as cicatrizes da ignomínia, do desprezo, senão do deboche.

Pouco transparente e equivocada sobre as repercussões de um alinhamento automático com os Estados Unidos, se associa a documentos desequilibrados na forma e no conteúdo e deixa suspensa no ar um possível bloqueio militar dos Estados Unidos da América à Venezuela, sob o argumento pouco convincente de combate ao tráfico de drogas. Neste jogo geopolítico e eleitoral de Trump, o Brasil corre o risco de se ver envolvido num conflito armado em que não temos nada a ganhar e tudo a perder.O governo talvez esteja irresponsavelmente colocando em risco nossa integridade territorial, caso aqui se abram corredores para a passagem de combatentes de países “amigos”. Atitudes como estas passam despercebidas do povo e até do Congresso em meio ao caos diário de ofensas entre altas autoridades do governo e a imprensa, sempre acusada de oposicionismo desleal.

Nossa política econômica, muito antes da pandemia, já se havia mostrado facciosa, enriquecendo ricos e multiplicando pobres, desempregando jovens, desestimulando a pesquisa universitária e científica. Na hora da pandemia arrasta os pés entre a promessa e a praga. E insiste no corte de salários, inclusive de aposentados, desde que os donos da prata amada sequer sejam melindrados.

Nosso ministro da Economia, que se arvorou em senhor absoluto da Fazenda, da Indústria e Comércio e do Planejamento, nos promete a cada dia um Brasil melhor, que nunca chega. Nossa disparidade social aumenta e o desemprego se aprofunda.

Economistas de amplo espectro doutrinário criticam a política de austeridade criminosa e sugerem alternativas a um modelo que se comprova ideologicamente fantasioso e economicamente desastroso. Mas, Guedes se julga mais sábio, mais ilustrado e mais preparado e segue em sua sinfonia da desconstrução nacional.

O líder se abespinha com o ministro da Saúde que se revela competente ao mostrar a capacidade de organização de nossos servidores públicos. Abre-se uma pústula narcísica, lancetada pela inveja e pelos demônios do autoritarismo e da arrogância.

Apoiado por percentagem não desprezível de seus eleitores, crédulos em seu evangelho apocalíptico, nosso líder se esgueira pelas sombras de seus currais, alheio aos panelaços que a cada noite escancaram a revolta dos desiludidos.

Insistente e monotemático, obsessivo e errático, desdizendo hoje o que dirá amanhã, nosso líder nos tange pela canga ao matadouro.

Petrificados e sitiados diante do abuso do mandato democrático que ingenuamente lhe ofereceram, muitos de nós procuram se convencer que algo há de acontecer. Um milagre. E nos cantos das esquinas murmuram as esperanças de que um novo Salvador surgirá destas cinzas. E continuam a pensar que Deus é brasileiro e Trump o seu profeta. Triste sina.

Nossos governadores e prefeitos já nos mostram que continuar numa política desavisada e ideologicamente empedernida poderá resultar em ebulição social de difícil senão impossível controle. Talvez exista entre nós quem acalente este cenário de sangue e de fratricídio como forma de instalar no país um regime autoritário em que o Legislativo, o Judiciário e a Imprensa sejam amordaçados. Além do povo.

Nesta hipotética hora não saberemos a qual das duas pragas combater, embora ambas nos ameacem da mesma morte inglória e insana.

Embaixador aposentado